RIO - O escritor israelense Amós Oz usava sua palavra certeira para espalhar consciência e paz na terra aos homens de boa vontade — e isso não tem nada a ver com religião. Tem a ver com ser humano. “Do que é feita a maçã”, primeira obra póstuma dele a sair aqui no Brasil, mostra como sua lógica, sua veemência e sua sinceridade fazem falta no atual meio literário, onde o assunto preferencial costuma ser a morte da bezerra.
Não havia limites para a língua solta do escritor, morto em 2018, aos 79 anos. Culto e bem informado, além de romancista premiadíssimo, o autor de “O mesmo mar” (2001) e “Judas” (2014) sempre publicou ensaios polêmicos. Não é muito diferente neste novo livro, que transcreve seis conversas de Oz com a editora Shira Hadad. É jogo de compadre, mas funciona. Em pauta temos machismo, feminismo, amores, infância, política, crítica literária, prazeres e dores... Tem até humor ao estilo Woody Allen:
“Nossos ancestrais inventaram (o sentimento de culpa) aqui no país. Depois vieram os cristãos e fizeram o marketing com um sucesso colossal por todo o mundo. Mas a patente é nossa. Eu, como judeu, tenho sentimentos de culpa terríveis por termos inventado o sentimento de culpa”.
Pela sinceridade com que o escritor comenta tantos assuntos, “Do que é feita a maçã” é quase uma atualização da sua autobiografia, gênero que Oz encarou com “De amor e trevas” (2005) — este, sim, um longo relato sobre sua vida e sucesso de crítica e de público em todo o mundo.
A literatura, claro, também não poderia faltar nas conversas do escritor, que teve mais de 40 livros publicados — entre romances, contos, poesia e ensaios. Sua novela “Sumchi”, uma curta história de amor de um garoto de 11 anos, também está para sair aqui no Brasil. Para ele, o fato de escrever dia após dia, durante cinco décadas, não facilitou seu trabalho na hora de criar personagens e tramas. Por isso, recomenda cautela a quem se aventura nas letras:
“Escrever é como dirigir o tempo todo com um pé no acelerador e outro no freio. O pé no acelerador é feito de ingenuidade, de entusiasmo, da alegria da escrita. O pé no freio é feito de autoconsciência e autocrítica”.
Amós também pisava fundo em respostas eventualmente desconcertantes às questões levantadas por Shira Hadad. Um exemplo, doa a quem doer: “Fico com raiva do que enfiaram em minha cabeça quando eu era criança, e também do que fazem hoje feministas militantes, e militantes do politicamente correto (...) porque multiplicam os sentimentos de vergonha e de culpa. Multiplicam a hipocrisia e a ansiedade”.
Pois é. Em poucas frases, o escritor faz uma pertinente crítica à cultura machista em que fomos criados. Desnuda-se sem medos, como todo homenzinho deveria fazer, mas não poupa o exagero da cultura politicamente correta, que pode ser tão irresponsável quanto qualquer fanatismo político ou religioso. Vale conferir sua argumentação.
O fanatismo, diga-se, sempre foi alvo de Amós Oz, como se pode conferir em “Mais de uma luz” (2017) e “Como curar um fanático” (2016). O assunto continua presente no livro póstumo, conquistando até o terreno dos relacionamentos pessoais. É um caso a ser pensado: não estamos sendo radicais demais também dentro de casa?
Assim como em seus romances, o escritor aponta caminhos pacíficos para as soluções nossas de cada dia. É sempre veemente ao pregar, por exemplo, a existência de um estado palestino e outro judeu — quase um pecado na política israelense. Sabia do que estava falando. Participou de duas guerras, experiência violenta e fundamental para sedimentar seu discurso de paz e amor contra as injustiças cometidas sobre a comunidade palestina.
“Do que é feita a maçã”
Autor: Amós Oz (com Shira Hadad)
Tradutor: Paulo Geiger
Editora: Companhia das Letras Páginas: 168
Preço: R$ 39,90
Cotação: Bom