Nada é mais apropriado do que fazer uma biografia em quadrinhos sobre o maior autor de quadrinhos da história. Coube ao artista americano Tom Scioli realizar a tarefa de desvendar a vida do criador de personagens icônicos como Homem-Aranha, Hulk, Quarteto Fantástico, os X-Men e tantos outros em “Prazer, Stan” — que acaba de ganhar uma edição nacional pela editora Conrad.
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Scioli deixa claro nas primeiras páginas que a HQ não foi aprovada por Stan Lee, nem por seu espólio, nem pela Marvel Comics, salientando ainda que a narrativa adapta fontes variadas — introdução que já desperta a atenção do leitor ao descolar a obra de produções de chapa-branca sobre o cartunista, como o inofensivo documentário “Stan Lee” (2023), recém-produzido pela Disney+.
O Stan Lee das páginas de Scioli, assim como o da vida real, era um homem cheio de complicações e inseguranças. Leitor ávido desde criança, queria ser escritor de romances e não se orgulhava de escrever histórias em quadrinhos, trabalho que começou a exercer aos 17 anos na editora Timely Comics, mais tarde rebatizada de Marvel Comics, ao lado de Joe Simon e Jack Kirby — lenda do ramo que também foi biografada por Scioli nos mesmos moldes de graphic novel.
Nessa época, durante a Segunda Guerra, as histórias de super-heróis eram um sucesso, particularmente o Capitão América, mas a temática perdeu força nos anos posteriores ao conflito, retomando a popularidade apenas em 1961 com a primeira publicação do Quarteto Fantástico, resposta de Stan ao impacto da Liga da Justiça, criação da concorrente DC Comics.
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A partir daí, estabeleceu-se o chamado “método Marvel” de produção, nada convencional, pois o texto era escrito depois de o artista desenhar a história. “Você acaba com uma história cheia de ação, com diálogos espertos que complementam o que se passa no visual”, explica Stan para um colega quadrinista.
A estratégia transformou a Marvel Comics em uma máquina de fazer dinheiro. Lee enriquecia aos montes e bancava os luxos da mulher à medida que os novos heróis surgiam e caíam rapidamente nas graças do público, como o monstro atormentado Hulk; o deus nórdico Thor; o empresário bilionário Homem de Ferro, o advogado cego Demolidor, entre outros, além do mais popular deles, o órfão adolescente Homem-Aranha.
Segundo Stan, o herói lançador de teias não foi bem aceito por seu chefe da época, que teria dito: “É a pior coisa que já ouvi. Todo mundo odeia aranhas”. Ele, porém, não se intimidou e lançou Peter Parker de forma despretensiosa na última edição de uma série que seria cancelada. Foi um sucesso instantâneo. “Se você tem uma ideia que acha boa de verdade, não deixe um idiota lhe dizer que não”, passou a ser um mantra do quadrinista até a sua morte, em 2018, aos 95 anos.
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Um cara inquieto
Com desenhos simples e diretos, Scioli é corajoso ao mostrar as facetas controversas de seu biografado, mas sem jamais torná-lo um vilão. Típico nova-iorquino, Stanley Martin Lieber era um cara inquieto e de fala rápida, e o livro se propõe a refletir essa energia em cada página.
Fica claro que Stan, apaixonado pelos holofotes, sempre se mostrava como o grande criador de um universo que, na realidade, era fruto de um esforço colaborativo. Por vezes, ele desmerecia o trabalho dos funcionários e, não à toa, se desentendeu com Jack Kirby, que trocou a Marvel pela DC no fim dos anos 1970. Nesse ponto, destaca-se o momento cômico em que Lee fica chocado ao descobrir a respeito da nova criação de Kirby, o personagem Funky Flashman, vilão do Senhor Milagre, que nada mais era do que um empresário oportunista e picareta, sátira ácida de seu ex-colega.
A popularidade de Stan só decolou em meados dos anos 1980, quando o bigodudo de óculos escuros e peruca se mudou de Nova York para a Califórnia, onde a Marvel montou um estúdio de TV e Cinema — indústria pela qual a empresa construiu um império bilionário que domina o mercado até hoje.
Há ainda curiosas aparições pontuais que vão divertir o leitor, como as de Bob Kane, criador do Batman; dos roqueiros maquiados do Kiss, que ganharam uma edição especial da Marvel feita com o sangue dos integrantes da banda; de Pamela Anderson, que inspirou a série de animação adulta “Stripperella” (2003); e dos presidentes americanos Bill Clinton e George W. Bush.
“Prazer, Stan” revela, fundamentalmente, um empresário desesperado para que o resto do mundo reconhecesse sua genialidade e ampliasse sua lenda. Por méritos próprios, mas também de outros, ele conseguiu. Excelsior!
Gabriel Zorzetto é jornalista
‘Prazer, Stan’
Autor: Tom Scioli. Tradução: Érico Assis. Editora: Conrad. Páginas: 208. Preço: R$ 83,89. Cotação: ótimo.