RIO - Ao se debruçar sobre a vida de Jacques Lacan, Elisabeth Roudinesco teve a oportunidade de constituir os arquivos do psiquiatra francês e fazer sua biografia quase que em primeira mão, publicada em 1993. Duas décadas mais tarde, ela se aventurou em um desafio oposto: escrever a biografia de um dos personagens mais documentados da História. Em “Sigmund Freud na sua época e em nosso tempo” (Zahar), lançado agora no Brasil, a psicanalista e historiadora parisiense busca novas abordagens sobre o pai da psicanálise, que desde 1924 já foi tema de algumas dezenas de biografias.
De passagem pelo Rio, Elisabeth falou com O GLOBO sobre a construção de seu Freud, responsável por uma revolução que define como “completamente racional e obcecada pela conquista dos rios subterrâneos”. Fugindo ao máximo da hagiografia e bebendo na fonte de diferentes escolas de pesquisa (desde os biógrafos oficiais aos detratores antifreudianos), ela detalha as contradições de um pensador paradoxal, que aparece à frente de sua época ao mesmo tempo em que se firma como um perfeito produto dela. Um cientista literato que se move na fronteira entre dois mundos, o do iluminismo sombrio e o do romantismo negro.
Quais são os desafios de biografar uma figura já amplamente trabalhada?
Freud é como a Revolução Francesa, cada época faz a sua revisão. Há o período da história oficial, feita por discípulos como Ernest Jones, e o do antifreudismo. Busquei uma síntese dos dois. Mas também precisava de um ângulo diferente para me posicionar em relação a biógrafos anteriores. Peter Gay, por exemplo, era um historiador vitoriano, e assim fez de Freud um sábio inglês, herdeiro de Darwin. Eu queria pôr Freud nesse outro contexto, o de Viena, o que ninguém havia feito antes.
E que Freud é esse?
Seu universo é a Viena judia da Belle Époque e a Europa antes da guerra de 1914. Mas também insisti em mostrar a importância de pertencer a uma família de judeus da Galícia, comerciantes cujos filhos se tornam intelectuais. Freud é herdeiro de uma época de casamentos arranjados, mas faz parte de uma geração que começa a casar por amor. Ele está nessa época dobradiça, de transição. Isso vai influenciar a sua teoria da sexualidade, de que escolhemos nosso destino amoroso.
Qual é o lugar da família na vida de Freud?
Ao se apaixonar, Freud via em dobro. Aconteceu em sua juventude quando se apaixonou por Gisela Fluss e também pela mãe dela. No seu casamento não foi diferente: amava carnalmente sua esposa, mas adorava a cunhada e rivalizava com a sogra. Ele sempre reconstruía uma história de família. Aí temos a gênese do que iria fazer depois com o inconsciente. Desde cedo, observava fascinado o que se passa nas famílias.
Por que o ambiente em que Freud viveu foi essencial para o surgimento da psicanálise?
A psicanálise foi inventada em uma época da burguesia triunfante, e para os burgueses. Porque eram pessoas ociosas, que tinham tempo de se dedicar a si mesmos. Os pacientes de Freud parecem com personagens de Proust, Thomas Mann e Stefan Zweig. No início, a análise não era para os loucos e doentes, mas para os neuróticos. Os discípulos de Freud é que irão, a partir de Jung, estendê-la a todos os tipos de problemas mentais.
O seu Freud é liberal em muitos aspectos e conservador em outros...
Já fizeram dele até um subversivo de esquerda. Eu, por outro lado, vejo-o como um conservador esclarecido. Freud fez uma revolução do íntimo, não do social. Sua terra prometida é a da exploração do si. Era favorável à emancipação das mulheres, ao divórcio e ao aborto, no limite do que era possível em sua época. Mostrei os paradoxos dele, como o de ser um grande teórico da sexualidade e não ter uma sexualidade muito carregada.
No livro, a senhora confirma que a vida sexual de Freud durou apenas nove anos. Sua mulher já havia tido seis filhos e ele não queria que ela sofresse com mais uma gravidez. Por que não usar métodos contraceptivos?
Porque os preservativos da época eram horríveis. E ele era contra o coito interrompido. Mas creio que há outras razões. Freud preferia se ocupar de sua obra, e era adepto da frustração, do autocontrole. Para ele, a felicidade dos homens é poder controlar suas pulsões, especialmente quando se tornam especialistas da sexualidade. Porém, sabemos pouco sobre a vida sexual dele antes do casamento: apenas que teve alguns casos e que não frequentava bordeis
A senhora define a psicanálise como uma tentativa de transformar “o romantismo numa ciência”. Como a herança do romantismo influenciou Freud?
O essencial é a dialética entre sombra e luz. Não por acaso encontramos em Freud figuras como Fausto e Mefistófeles, ou a luta entre o Anjo e Jacó. Freud é um homem das luzes, mas é obcecado pelo que há de mais sombrio no indivíduo. Pertence a uma época do racional e convive com uma tentação permanente do irracional e do extravagante. Ele se interessou por coisas estranhas, como telepatia, e acreditava em teorias do complô. E viveu cercado por discípulos transgressores, como Reich, Jung e outros rebeldes.
Depois do seu livro, o que ainda resta a pesquisar?
Do ponto de vista dos fatos, não há mais novidades, só maneiras diferentes de abordar as mesmas coisas. Mas restam tesouros nos arquivos, principalmente sobre o jovem Freud, incluindo a sua fase como neurologista, que eu não tratei muito. Acho que também falta um livro que estude todos os casos [pacientes] de Freud. Busquei alguns conhecidos e acrescentei outros que não haviam sido explorados, mas não todos.
SERVIÇO :
“Sigmund Freud na sua época e em nosso tempo’’
Elisabeth Roudinesco
biografia
Zahar, 528 páginas.
R$ 79,90