Cultura
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Por Bolívar Torres

A homossexualidade foi fonte de inquietação e inspiração para Elizabeth Bishop (1911-1979), levando a poeta americana a uma errância constante de país em país. É o que mostra “Elizabeth Bishop: uma biografia” (Companhia das Letras), que acaba de ser lançada no Brasil, país que a escritora frequentou entre 1951 e 1974.

Da internação psiquiátrica da mãe, que traumatizou a sua infância, ao reconhecimento literário tardio no fim da vida, passando pelo seu relacionamento com a arquiteta brasileira Lota de Macedo Soares e pela sua luta contra a depressão e o alcoolismo, surge o retrato de uma alma à margem, inexoravelmente ligada à aventura, ao risco e ao desvio.

Autor da biografia, o americano Thomas Travisano descobriu novos documentos, como uma inédita correspondência com a psiquiatra da escritora nos anos 1940, em que Bishop lida frontalmente com sua lesbianidade pela primeira vez e revela que foi abusada por um tio na infância e adolescência.

Nos EUA, onde foi lançado em 2019, o livro saiu com outro título, “Love unknown” (amor desconhecido, em inglês). Tirado de um verso de George Herbert (um dos preferidos de Bishop), é uma alusão ao constante processo de autodescoberta amorosa da autora, vencedora do Prêmio Pulitzer em 1976.

— A sexualidade de Bishop é central para entender a sua personalidade resguardada — diz Travisano, professor emérito do Hartwick College, em Nova York, que há mais de três décadas vem percorrendo os passos da autora de “Questões de viagem” e “O iceberg imaginário”. — Mas também a sua obra. Se você examinar seus versos, talvez 40% sejam compostos de poemas de amor que não podem se declarar como tal. As amantes são tratadas como amigas, e ela evita usar pronomes. Há toda uma técnica complexa que ela usa para dizer e ao mesmo tempo não dizer.

Encontro como autor

Travisano encontrou Bishop pessoalmente em 1977, dois anos antes da morte de sua biografada. Sua figura já lhe pareceu então um tanto autoprotetora e esquiva, mas ao mesmo engraçada e acessível.

— Ela sabia que eu estudava sua obra, então deve ter pensado: “Esse garoto conhece meus segredos” — conta. — Isso a deixou desconfiada. Mas nesse encontro também pude perceber seu senso de humor. Muita gente ainda a apresenta como uma poeta impessoal, o que é um erro. O que ela escreve é baseado em sua vida, mas leva um tempo para entender isso, por causa do estilo enigmático.

Overdose quase fatal

Amigo de Bishop, o poeta Robert Lowell dizia que a poeta tinha "talento para a vida". A existência da poeta, porém, é moldada traumas. Entre viagens e explorações, há momentos difíceis, como uma overdose provocada por bebida e medicamentos. Bishop foi encontrada inconsciente na cama, do mesmo jeito que ela própria encontraria a ex-parceira Lota de Macedo Soares, em 1967, em Nova York. A arquiteta brasileira, que após um episódio depressivo tinha viajado aos EUA atrás de Bishop, teve menos sorte e acabou não resistindo.

A relação com mãe é outra fonte de dor. Segundo Travisano, Bishop associou o início do seu alcoolismo à morte da mãe, em 1934. Essas memórias dolorosas são tratadas nas cartas inéditas com a psiquiatra Ruth Foster. A correspondência, por sinal, contradiz a tese de que a profundidade psicológica dos seus poemas é acidental.

— Ela era capaz de pensar psicanaliticamente ao escrever poemas — diz o biógrafo. — Conhecia bem o seu Freud, e plantava deliberadamente esse tipo de material. Sabia o que estava fazendo.

Elizabeth Bishop com o gato Tobias na fazenda de Lota Soares, em Petrópolis — Foto: Divulgação
Elizabeth Bishop com o gato Tobias na fazenda de Lota Soares, em Petrópolis — Foto: Divulgação

Barreiras culturais

Outra correspondência inédita importante é com Louise Bradley, amiga íntima de Bishop na adolescência. Em uma das cartas, a poeta lança os preceitos pelos quais iria viver o resto da existência: "Só se vive uma vez, e eu vou viver (...) Boa sorte - e agarre tudo que você puder, enquanto puder".

Apesar do espírito aventureiro, a autora não participou de grandes eventos históricos. O que torna sua trajetória cativante, acredita Travisano, são as barreiras culturais que ela enfrentou. Soma-se a isso uma grande rede de amizades que inclui personalidades importantes, com a cena internacional da contracultura gay como pano de fundo.

— Seu cosmopolitismo é um aspecto que precisa ser destacado — avalia o biógrafo. — Além de morar em Paris por um tempo, ela esteve intimamente associada a três países, os EUA, o Canadá (sua mãe era canadense) e o Brasil. Nenhum de seus relacionamentos com esses países era simples ou direto. Ela nunca se sentiu completamente em casa em lugar algum.

Em busca de um lar

É até clichê dizer que Bishop passou a vida buscando por um lar. O mais próximo que chegou disso foi em Petrópolis, durante a sua estada de nove anos na fazenda de sua companheira, Lota Soares. Lá, teve liberdade para ser ela mesma. Porém, ao contrário do que mostra o filme “Flores raras” (2014), sobre a história de amor das duas, a casa planejada por Lota recém-começava a ser construída quando a americana chegou (para Travisano, o longa também não capturou bem o “sentido de exploradora” da poeta, assim como outras biografias dela). Bishop passou um longo tempo praticamente acampando no lugar, sem água encanada ou eletricidade.

Uma das maiores polêmicas envolvendo Bishop no Brasil é o seu entusiasmo em relação ao golpe de 1964, revelado recentemente em cartas para o amigo Robert Lowell. Ela chegou a descrever a ação militar como “revolução rápida e bonita”. Para Travisano, porém, é preciso colocar essas ideias em seu devido contexto.

— Bishop era uma agregada na casa da família de Lota, que era muito conservadora — diz o biógrafo. — Sua opinião era muito influenciada por ela. Assim que ficou claro o que aquele golpe representava, ela deixou de apoiá-lo. Esse apoio, aliás, nunca foi público.

Serviço

"Elizabeth Bishop: Uma biografia". Autor:Thomas Travisano. Tradução: Luiz A. De Araújo. Editora: Companhia das Letras. Páginas: 536. Preço: R$ 129,90.

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