RIO - Fundador do Grupo Nós do Morro, que completa três décadas neste ano, Guti Fraga olha para o tempo como um amigo a quem se visita para aquelas boas lembranças que reforçam de onde viemos, sem nostalgia ou cobranças. Pelo contrário, Fraga vê o passado como um pavimento que o traz ao presente, um lugar mais sólido, de onde ele mira o futuro com animação, apesar da crise econômica que impacta a saúde financeira do grupo, cujas atividades são patrocinadas pela Petrobras desde 2001.
— Acabamos de encerrar o último ciclo do nosso contrato ( com a Petrobras ), e agora vamos seguir trabalhando para manter nossas atividades — diz Fraga. — Assim que saí da presidência da Funarte ( em 2014 ) e pensei nesses 30 anos do Nós do Morro, decidi estar mais perto da minha galera, das aulas com a garotada, e criar algo que permitisse reviver intensamente os momentos da minha vida. Estamos trabalhando a questão da memória, acho que a arte está ligada à memória. Porque, quando a gente cria, a gente deixa um legado. Então esse novo projeto celebra essa trajetória, que segue. Estamos lutando para conseguir apoiadores.
Para o aniversário do Nós do Morro, fundado em 1986 no Vidigal, Fraga e os cofundadores do grupo, Fernando Mello da Costa (diretor e cenógrafo) e Luiz Paulo Corrêa e Castro (dramaturgo), conceberam a ocupação “Nós do Morro 30 anos de arte” ( veja mais na agenda abaixo ). Com peças, sarau, mostra de filmes e exposição, o projeto chegou ao Sesc Copacabana na sexta passada com uma peça inédita, “Bataclã”, e continua nesta quarta com a estreia de uma nova versão para um espetáculo de 1997, “Abalou, um musical funk”, que marcou a primeira temporada do grupo na Zona Sul.
— Foi um trabalho muito emblemático, o primeiro que nos rendeu prêmios — diz Fraga. — Era a primeira vez que saímos do Vidigal para Ipanema, e num espetáculo que falava sobre essa relação entre viver dentro e fora do morro.
No trabalho, há tanto um personagem do asfalto, o Maestro, que sobe o morro para tentar fazer um novo tipo de funk, misturando Beethoven e Caetano Veloso, como Tininha, que sonha em deixar a favela para morar em Copacabana e enfrenta a resistência da turma de outra moradora do morro, Martinha, seguidora fiel dos MCs Pilantra e Lagartão. Para a nova montagem, Corrêa e Castro adaptou o texto, considerando as circunstâncias políticas do país, o crescimento e as novas formas de conflito e conciliação na favela.
— É uma história romântica, da época da ascensão do rap e do funk — conta o autor. — A ideia era mostrar personagens que olham para dentro e para fora da favela, para o local e para o mundo. Era um momento em que sentíamos, no grupo, a necessidade de ampliar nosso horizonte. E a peça mostra as dificuldades e as descobertas de quem coloca o pé fora do morro. Mas é um passo necessário. Transcender limites e transformar pessoas.
Nesse sentido, Guti Fraga não vê distância entre o passado e o presente do Nós do Morro. E, de lá para cá, o projeto iniciado para “formar artistas, técnicos e público de teatro no morro”, como define Corrêa e Castro, tornou-se referência no teatro, no cinema e na TV, como um celeiro de novos talentos.
— Sempre trabalhamos com uma coisa na cabeça: como a arte pode transformar as pessoas — diz Fraga. — Nesse caminho, são muitas histórias e divisores de água, como o filme “Cidade de Deus” ( de Fernando Meirelles, 2002 ), que revelou uma porção de atores. Até hoje é assim, com muitos talentos surgindo. Isso prova que as pessoas só precisam ter oportunidade para sonhar.