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Já fazia um tempo que Maria Stockler Carvalhosa não conseguia ver os números das moedas e tampouco identificar as palavras escritas na lousa, o que vinha atrapalhando seu desempenho escolar. Oito anos atrás, em uma manhã de setembro, foi preciso que seu corpo a derrubasse para fazer soar o grito de alerta. Ao tropeçar em uma mochila na sala de aula, caiu no chão. De onde foi difícil se levantar.

O exame de ressonância magnética apontou uma hidrocefalia, ou seja, um acúmulo anormal de líquido nas cavidades do cérebro (o LCR, líquido cefalorraquidiano), o que aumenta a pressão sobre o nervo óptico. Ela foi internada às pressas e passou pela primeira das cinco cirurgias que faria em dois meses, para tentar reverter um diagnóstico médico equivocado. “Tive dois hematomas intracranianos por causa de um tratamento muito errado”, diz.

Maria tinha 13 anos quando parou de enxergar. “Perdi o chão. Fiquei totalmente louca. E acho que a loucura foi um modo de me proteger de tudo que estava acontecendo. Comecei a ter TOC (Transtorno obsessivo-compulsivo), muitas manias, pensamentos rápidos, eram muitas batalhas interiores. Fui para um lugar muito perto da morte e da loucura total. Demorei para conseguir voltar”, detalha. Apesar da deficiência, Maria explica que tinha alucinações visuais, um excesso de imagens e cores vinham à cabeça o tempo inteiro, e só descobriu, cinco anos mais tarde, que se tratava da Síndrome de Charles Bonnet.

No retorno à escola, três meses depois, a menina carioca encontrou a indiferença dos amigos. “Tive que lidar com o isolamento, todos passaram a me tratar de um jeito muito estranho. Quando você vira deficiente de uma hora para outra, a responsabilidade é toda jogada para você. Você leva muita porrada até aprender a se posicionar”, conta Maria, que sentia a má vontade dos professores de incluí-la nas aulas, por exemplo, quando pedia para falarem em voz alta o que estavam escrevendo no quadro, e era ignorada.

Diretora de arte e cenógrafa, a mãe de Maria, Mari Stockler, lembra bem do sofrimento daquele período. “Ela sofreu muito bullying, era inacreditável pensar que isso pudesse acontecer”, conta. “Tiveram momentos em que Maria estava tão abatida depois de tudo que passamos na internação, que me disse: ‘Quero voltar para o hospital, estou muito triste aqui fora’. Isso quebrou meu coração. Muito duro ver um filho sofrer, foi um processo doloroso. Falta empatia das pessoas, falta cidadania, afetividade”, completa.

Talvez pior do que a distância dos amigos, foi perder a companhia dos livros. Desde menina, Maria lia o tempo inteiro, sempre estimulada pela família — é filha do artista plástico Carlito Carvalhosa, morto em 2021 em decorrência de um câncer de intestino. “Foi muito difícil aceitar que eu não ia ler. Demorei muito para me adaptar depois que fiquei cega, levou um ano para eu voltar a ler sozinha. Na época, não gostei dos audiolivros que encontrei. Um dia, fiquei tão raivosa que tirei todos os livros do meu quarto. Achava que qualquer outra experiência de leitura que não fosse visual era falsa. Mas isso tem a ver com o jeito que eu encarava a deficiência naquela época, como se sempre perdesse coisas nessa tradução”, afirma a estudante, que, atualmente, cursa Letras na PUC-Rio.

'Lidei com o isolamento, todos passaram a me tratar de um jeito muito estranho. Você leva muita porrada até aprender a se posicionar', diz a jovem — Foto: Ana Branco
'Lidei com o isolamento, todos passaram a me tratar de um jeito muito estranho. Você leva muita porrada até aprender a se posicionar', diz a jovem — Foto: Ana Branco

Pesquisando o universo dos audiobooks, Maria topou com sintetizadores de voz malfeitos, leituras neutras e, segundo ela, em um tom quase caridoso, como se qualquer tipo de leitura servisse. “A inclusão é importante, mas não a inclusão pela inclusão, não estamos mais nessa fase. Já é um direito os deficientes visuais terem acesso a bens culturais; agora queremos acesso com qualidade”, reitera.

E é o que a empreendedora propõe com a Supersônica, editora especializada em audiobooks que traz obras relevantes na voz de artistas brasileiros, a começar pelo “O acontecimento”, da vencedora do Nobel de Literatura Annie Ernaux, com narração da atriz Isabel Teixeira; e “As mulheres de Tijucopapo”, de Marilene Felinto, interpretado por Roberta Estrela D’Alva. A ideia do projeto partiu da cineasta, dramaturga e cenógrafa Daniela Thomas, responsável pela direção artística da editora. “Eu vi a Maria nascer. E ela é uma pessoa do seu tempo, antenada, muito eficiente, tem uma inteligência despretensiosa, e sempre muito doce”, descreve. E continua: “A Maria tem uma compreensão do lugar que ocupa e das implicações disso. Ela viveu tudo o que viveu silenciosamente. Me impressiona todos os dias a leveza que ela transmite e como é emocionalmente capaz”.

Entre os oito livros escolhidos para serem lançados nesse primeiro momento da Supersônica, também estão “O livro do xadrez”, de Stefan Zweig, na voz de Guilherme Weber, e “Os mortos”, de James Joyce, que ganhou a narração do ator Caio Blat, fã da editora. “É muito linda a forma como a Maria encara a vida, ela é muito inspiradora, está sempre inventando alguma coisa diferente, sempre estudando novas tecnologias, novos aparelhos”, diz ele, que convive com a amiga há mais de seis anos. “Acompanhei a batalha dela para conseguir o Café e foi muito bonita e comovente ver essa fase da adaptação. A Maria é uma das companhias mais adoráveis que se tem para conversar”, elogia Caio.

Café é o cão-guia que a acompanha há um ano, depois de uma longa espera para ter um animal que fosse compatível com seu tamanho, estilo de vida, entre tantos outros pré-requisitos. “O Café me deixou muito melhor com a minha deficiência, porque ele é meu parceiro, e mudou muito o jeito com que as pessoas falam comigo. Hoje, escuto, ‘nossa, você tem cão-guia, que incrível’, e não mais ‘nossa, coitada, ela é cega’, frase que ouvia quando andava com a bengala”, conta. “Ele sabe tudo o que aconteceu nesse último ano, comecei a namorar (o baterista Theo Ceccato) e ele testemunhou, lancei a Supersônica e ele estava bem junto. O Café é meu melhor amigo mesmo.”

Hoje, aos 21 anos, Maria caminha mais tranquila — nas ruas e na vida. “Demorou muito para eu achar que ser cega é uma oportunidade também. Tem muitas barreiras, mas, por um lado, adoro ser deficiente. É bom estar fora desse padrão de normalidade de saúde, de corpo perfeito. Isso é uma coisa produtiva. Estou em paz do jeito que eu sou, mas não do jeito que sou tratada”, reflete. “Ao mesmo tempo que você é uma ‘heroína’, é tida como uma pessoa ignorante, frágil, incapaz. Você fica meio sem lugar.”

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