• Marcelo Tas
Atualizado em
Doação infantil (Foto: Reprodução)

Com o passar dos anos, os filhos crescem e os pais têm de aperfeiçoar o ouvido para identificar sutilezas no choro deles. Dia desses, o silêncio da casa foi quebrado por um lamento diferente. Não houve briga ou discussão prévia. O som era um ganido seco entremeado por agudos e sinceros staccatos – termo musical usado para indicar que duas notas devem ser tocadas com uma pausa brusca entre elas.

É crucial observar a sinceridade da choradeira. As crianças aprendem desde cedo a força do “quem não chora não mama” e a falsear o pranto para conseguir as coisas. Há que se identificar os canastrões mirins que, em vez de se manifestar por meio de choro, apenas tentam nos enganar.

Desta vez, não há dúvida, estou diante de um choro legítimo. É revolta autêntica. A massa sonora aumenta de intensidade e volume caminhando na minha direção. A porta do quarto se abre e Clarice dispara as palavras entre soluços e lágrimas.

- Eu... não... consigo... doar. Não consigo... ainda!

Ela está de pijama com um bicho de pelúcia nas mãos e dirige seu olhar de indignação na minha direção. Acabo de sair da cama. Ainda sonolento, meu cérebro demorar até pegar no tranco e entender a cena.

- Um dia eu vou conseguir. Mas ainda não estou preparada! Eu... consigo... doar, entende?!

Eu não entendo nada. Minha mulher vem atrás da manifestação com uma explicação: a escola enviou uma carta pedindo que os alunos doassem brinquedos que não usam mais para uma instituição. Bel e Clarice aproveitavam o domingo para selecionar brinquedos para doação quando Clarice explodiu no choro. A pequena manifestante tem na ponta da língua o motivo da bronca.

- Nas férias, quando eu estava fora de casa, vocês doaram brinquedos meus sem me consultar! Até hoje sinto falta do postinho de gasolina que o Miguel tinha me dado. Onde ele está agora?

Não sei o paradeiro do posto de gasolina que o irmão havia dado a Clarice. Mas lembro a ela que o brinquedo estava bem usado, até com algumas partes quebradas...

- Não importa se estava quebrado, o brinquedo era meu. Tinha direito de ser consultada!

Fui pego comentando erro duplo: não valorizei o valor do postinho para Clarice e ainda escolhi um brinquedo quebrado para doação sem pensar na criança que iria recebê-lo. A mocinha me apontava um boneco de pelúcia furreca que traz à mão para encerrar a questão. Fala que aquele é o único brinquedo que vai conseguir doar dessa vez. Percebo minha última chance e arrisco.

- Ótimo, Clarice, você só deve doar quando seu coração quiser. Se depois desse bonequinho você sentir vontade de doar mais outro brinquedo, é só avisar.

A consciência do abismo da imensa desigualdade social no Brasil é perturbadora para adultos, imagina para a alma livre e sonhadora das crianças. Este é um assunto tão desconfortável quanto necessário. O que não podemos é deixar a dura realidade ter efeito paralisante ou alienante dentro de casa. No dia seguinte, silenciosamente, Clarice já havia adicionado outros quatros brinquedos na caixa de doação. Dessa vez, bem mais atraentes que o bichinho de pelúcia furreca. É um pequeno passo ao qual estou dando atenção e valor.

Marcelo Tas (Foto: Daniela Toviansky)

Marcelo Tas é jornalista e apresentador de TV, casado com a atriz Bel Kowarick e tem três filhos: Luc, 25 anos, Miguel, 13, e Clarice, 9. E-mail: [email protected]

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