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O Complexo do Alemão, onde se fechou o Teleférico depois dos Jogos.
O Complexo do Alemão, onde se fechou o Teleférico depois dos Jogos. Photograph: Pilar Olivares/Reuters
O Complexo do Alemão, onde se fechou o Teleférico depois dos Jogos. Photograph: Pilar Olivares/Reuters

A visão das favelas: 'Para nós, o legado é de abandono, indiferença e corrupção

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no Alemão

No nosso diário da vida no depois antes das Olímpiadas, Daiene Mendes diz que a favela perdeu mais do que ganhou e que os moradores são os verdadeiros campeões

O período olímpico acabou, com ele, a expectativa de construção um legado verdadeiro para nosso povo favelado. Pelo que percebo, por aqui a realização das olimpíadas não impactou positivamente na realidade dos moradores do Complexo do Alemão. Inclusive, arrisco a dizer que perdemos mais do que ganhamos.

Um grande pólo de esportes que atendia a toda a comunidade está fechado porque o Estado não repassou o dinheiro necessário para manutenção, todas as atividades esportivas davila olímpica da Grota estão interrompidas e sem previsão de retorno. O prédio está sem energia e as linhas telefônicas estão cortadas. A piscina, que antes atendia centenas de alunos, está com a água verde de sujeira e acumula mosquitos. Esse, eu chamo de legado do abandono.

Com o anúncio do fim das olimpíadas, recebemos também o anúncio do fim da operação do Teleférico do Alemão. Ele foi inaugurado em 2011 e chegou a registrar 9 mil embarques diários. Com o fechamento do teleférico, acabou também uma feira de artesanato que movimentava a economia local e funcionava na estação palmeiras, a última estação do teleférico. É o legado da indiferença.

Há pouco menos de um mês, jornalistas comunitários foram presos e agredidos pela polícia enquanto cobriam uma ação. A operação tinha o objetivo de retirar dezenas de famílias que resolveram re-ocupar o espaço onde moravam, mas que por ordem do Estado foram retiradas e suas casas destruídas. O Governo, em contra-partida, pagaria mensalmente um aluguel social, garantindo com que essas pessoas tivessem onde morar até que casas definitivas lhes fossem entregues. Isso aconteceu há pelo menos 3 anos, nenhuma casa foi construída, o terreno estava ocioso e o Estado, justificado pela crise financeira, suspendeu o pagamento mensal do aluguel social.

Os jovens jornalistas e moradores do Complexo do Alemão ficaram presos por algumas horas, enquanto a polícia ameaçava e filmava todos os passos de outros jornalistas que foram ao encontro destes, para resolver a questão. Este é o legado da repressão, da tortura, da censura, da restrição à liberdade de imprensa e do abuso da autoridade policial.

Construída em 2010, a Biblioteca Parque funcionava no interior de uma das estações do teleférico. Era um dos principais pontos de cultura do Alemão, onde eram promovidos encontros musicais, saraus, concursos de literatura e transformou-se em um tipo de “ponto de encontro” dentro da favela. Logo depois das olimpíadas, com a intensificação da violência na região (que fica ao lado de uma base da unidade de polícia pacificadora) e também com o corte de verbas anunciado pelo governo do Estado, a biblioteca está de portas fechadas e toda a estação do teleférico está abandonada e ocupada pela polícia. A maioria das nossas conquistas, no campo da cultura, aqui no complexo do Alemão foram perdidas e canceladas pelo Estado. Este é o legado da corrupção, ganância e poder (que não o do povo).

Uma Clínica da família funcionava em uma das partes mais altas do complexo do Alemão e facilitava o acesso à saúde para os mais idosos que não tem condições e possibilidade de seguir até às partes mais baixas da favela para receber atendimento médico. Recentemente, o Governo anunciou o encerramento da unidade “por motivos de segurança”, já que na região os confrontos entre policiais e traficantes são quase que diários. Este, é o legado do descaso.

No dia Cinco de dezembro, uma tropa de policiais armados e denominados como “choque de ordem”, por volta das nove horas da manhã, entrou na Grota, um dos principais acessos do Complexo do Alemão. A ordem era remover dezenas de barracas de comida e outras lojas construídas por mais de dez anos, ao longo da Rua Joaquim de Queiroz.

Do outro lado do morro, quase que simultaneamente, um tiroteio que acontecia no “Mineiros”. Dentro de casa, dona Nilza de Paula, foi baleada com um tiro na cabeça. Ela tinha 51 anos, conhecida por muitos como “Tia Neném”, ela estava dentro de casa, foi socorrida por vizinhos e morreu logo em seguida em um hospital da região.

De acordo com um levanto produzido pelo repórter Betinho Casas novas, “Tia Neném” é a 20ª morte registrada durante o ano de 2016. De feridos e baleados os dados atingem a marca de 42 pessoas. Este é o Legado da morte e nessa, precisamos concordar, o Estado ganha medalha de ouro.

Ainda assim, somos campeões. Persistimos acordando às 6h da manhã, com ou sem tiroteio, seguindo em alerta o caminho para pegar o ônibus lotado, chegar ao trabalho e ser cobrado da necessidade de chegar no horário e de produzir além do necessário. Seguimos vencedores, por sair do trabalho e enfrentar horas de engarrafamento, chegar na faculdade e lutar consigo mesmo, pela concentração necessária para seguir o período, o ano, o dia.

Seguimos vencendo por acreditar que será possível, um novo modelo de cidade que contemple os mais pobres e que respeite a diversidade, apesar do cenário nos mostrar completamente o contrário. Seguimos vencedores porque inovamos e estamos sorrindo apesar do medo de encontrar a “Bala que roda perdida” e que vem de uma guerra justificada pelas drogas. Se há um povo a quem se deve o “mérito da vitória” é o povo favelado. Vencemos todos os dias. Venceremos.

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