Helio Gurovitz

Um juiz mais importante que Barbosa ou Moro

Um juiz mais importante que Barbosa ou Moro

O juiz em questão chama-se Ivan Ilitch Golovin, personagem do escritor russo Lev Tolstói

HELIO GUROVITZ
10/05/2015 - 10h01 - Atualizado 26/10/2016 15h46

Preste atenção a este juiz. Não se trata de nenhum ministro do STF, do STJ, nem de nenhum tribunal superior. Não é desembargador nem uma das estrelas que ocuparam o noticiário em tempos recentes, como Joaquim Barbosa ou Sergio Moro. O juiz em questão chama-se Ivan Ilitch Golovin, personagem do escritor russo Lev Tolstói. Graças a obras-primas como Guerra e paz e Anna Karenina, Tolstói entra em qualquer lista dos maiores romancistas de todos os tempos. É nos contos e nas novelas curtas, porém, que ele demonstra toda a sua força. A morte de Ivan Ilitch é considerada a mais perfeita novela jamais escrita. Pelo tema, pela forma como a história é contada e pela capacidade de pegar qualquer um de nós de imprevisto – e de nos pôr contra a parede.

A narrativa começa com uma cerimônia fúnebre em torno do corpo do juiz Ivan Ilitch, titular do Tribunal de Justiça, numa província da Rússia czarista. Nem bem o cadáver está no caixão, seus colegas disputam a sucessão e discutem quem ocupará o lugar de quem com o posto vago. A mulher chama a um canto o amigo mais próximo do marido morto para perguntar-lhe como seria possível extrair mais dinheiro do governo. Seus antigos confrades escapam da cerimônia para uma partida de cartas, que não havia como cancelar. Tolstói conta, a partir daí, como Ivan Ilitch levara uma vida exemplar para os padrões da sociedade russa. Formara-se em Direito, casara-se, tivera filhos e conquistara gradualmente posições no Judiciário. Seu sucesso fora coroado com a nomeação para o cargo de juiz no interior. O trabalho preenchia sua vida. Julgava os casos mais difíceis sem misturar questões pessoais e profissionais. Respeitado na comunidade local, usufruía com prazer o poder de decidir o destino alheio. Até que sofre uma queda ao instalar uma cortina em sua casa nova e, a partir daí, sua saúde degringola. Ele entra numa lenta decadência física, assistido por médicos incapazes de curar uma doença misteriosa, que lhe afeta ora o rim, ora o apêndice. Especialistas são consultados, estrelas da medicina demonstram a impotência da ciência diante da palavra-chave de Tolstói: o “inexorável”. Ivan Ilitch é forçado a deixar o trabalho, abandonado ao leito pela família e pelos amigos. Encontra consolo apenas no ópio que lhe alivia as dores insuportáveis e no apoio que recebe de um criado. Acamado, moribundo, começa a refletir sobre como pode uma doença sem cura aparente atingir alguém tão correto. Lá pelas tantas, pergunta-se: “Quem sabe eu não vivi como devia? Mas como assim, não como devia, se eu fiz tudo como era devido?”. O arrependimento toma conta de seus últimos pensamentos até que, aos 45 anos, sobrevém o “inexorável” – ele morre.

Conde da nobreza russa, Tolstói era um conservador. Desconfiava das aparências sociais, das ilusões políticas e de todo pensamento que vislumbrasse algum tipo de ordem no caos da vida e da história. Não acreditava nas teorias tão em voga em seu tempo, como socialismo, positivismo, ou mesmo liberalismo. “Tolstói rejeitava a reforma política por acreditar que a regeneração definitiva poderia vir apenas de dentro, e que a vida interior só poderia ser vivida de verdade nas profundezas intocadas das massas populares”, escreveu o pensador Isaiah Berlin em seu monumental ensaio O ouriço e a raposa. Foi tal crença que levou Tolstói, já mestre reconhecido da literatura russa, a abandonar as letras para levar uma vida frugal com a mulher e os 13 filhos na propriedade rural de Iasnaia Poliana, a 200 quilômetros de Moscou. Idoso, barba de profeta, esnobado pelo comitê do Prêmio Nobel, absorto em suas ideias pacifistas e em sua versão particular do Cristianismo, resolveu abandonar a própria família. Legou os direitos de suas obras ao povo russo e passou a viver como pedinte de uma cidade a outra da Rússia.

A morte de Ivan Ilitch foi publicado em 1886, quando Tolstói já largara a literatura. Berlin argumenta que, mesmo desprezando os teóricos intelectuais, Tolstói era um deles – acreditava na existência de alguma ordem mais profunda, capaz de explicar a realidade. Apenas não acreditava na nossa capacidade de encontrá-la ou de entendê-la. Não era, para usar a metáfora de Berlin, um “ouriço”, alguém que vê tudo através do prisma de uma teoria única. Era uma “raposa”, cujo refinamento e compreensão das múltiplas facetas da alma humana o tornavam capaz de esmiuçar e desmontar qualquer teoria que desse alguma aparência de ordem à vida. Não escolheu um juiz como personagem à toa. Juízes são o maior símbolo da ordem social que tanto desprezava. Não houve PEC da Bengala para Tolstói. Ele se manteve ativo até morrer, em 1910, aos 82 anos. A morte de Ivan Ilitch mostra que o mais importante não é a idade com que juízes, escritores ou qualquer um de nós nos aposentamos – nem quando ou como morreremos. É o que fazemos antes disso.








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