Helio Gurovitz

A paixão por Clarice Lispector

A paixão por Clarice Lispector

Ninguém passa impune pela leitura de Clarice. Raríssimos são os escritores, homens ou mulheres, capazes de provocar no leitor o mesmo efeito.

HELIO GUROVITZ
23/08/2015 - 10h01 - Atualizado 26/10/2016 15h42

A imagem do Brasil no exterior sofreu um baque em tempos recentes. A crise econômica levou as agências de avaliação de risco a rebaixar nossa nota. O petrolão não sai da pauta da imprensa internacional. Dois dos maiores jornais globais, New York Times e Financial Times, discutiram em editoriais na semana passada a crise política brasileira e o impeachment da presidente Dilma Rousseff. Foi-se, enfim, o encanto de país emergente. A mágica da Era Lula esfacelou-se toda – e somos agora expostos pela realidade crua de nossos limites. Em toda essa maré negativa, um fato chama a atenção: o mundo descobriu Clarice Lispector. Duas das publicações mais respeitadas pela intelectualidade americana, as revistas New Yorker e Paris Review, fizeram uma extensa cobertura do lançamento de uma nova tradução de sua obra em inglês. Resenhas positivas, nos grandes jornais americanos, começam enfim a se dar conta do valor literário de Clarice. É verdade que a imagem da cultura brasileira lá fora ainda está associada ao futebol, ao Carnaval e à musicalidade de um povo alegre e brejeiro. Ou àquele provincianismo que mistura compadres, coronéis e “questões sociais” no rame-rame medíocre que caracteriza boa parte da literatura latino-americana. Mas também temos Clarice. E ela é o oposto de tudo isso.

Uma mulher atormentada, de texto considerado difícil, até metafísico. Clarice é tão diferente de tudo o que conhecemos e esperamos da literatura brasileira que a reação sempre foi colocá-la numa gaveta própria, separada dos movimentos literários que sacudiram o país, classificada sob rótulos preconceituosos como “autora feminina” ou “para poucos”. Só que ninguém passa impune pela leitura de Clarice. Raríssimos, no mundo todo, são os escritores, homens ou mulheres, capazes de provocar no leitor o mesmo efeito. É possível não entendê-la, até mesmo odiá-la – mas não ignorá-la. Seu maior e mais difícil romance, A paixão segundo G.H., pode ser tão perturbador que ela mesma recomenda no prefácio que seja lido apenas por “pessoas de alma já formada”. “É um livro poderoso o bastante para destruir um ser humano”, disse em entrevista à Paris Review Benjamin Moser, biógrafo de Clarice, organizador da nova tradução de sua obra para o inglês e, sem dúvida, maior responsável pela atual  “onda Lispector” nos círculos literários americanos.
 

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LIVRO DA SEMANA | A paixão  segundo G.H.  Clarice Lispector  Rocco 180 páginas R$ 31 (Foto: Divulgação)

Se você for alguém de “alma já formada” e quiser encarar o romance, esteja preparado para ler algo como nunca leu. O enredo é banal. Uma escultora de iniciais G.H. toma café da manhã em seu apartamento no Rio de Janeiro. Decide começar a limpar a casa pelo quarto da empregada que pedira demissão na véspera. Lá, encontra uma barata que prende com a porta do armário. Ao contemplar o bicho, meio morto, meio vivo, dispara uma reflexão sobre a vida, a semelhança entre seres humanos e insetos, amor e sexo, Deus e religião. A “paixão” do título é sua via-crúcis pelos labirintos da mente humana, capaz de desnudar, estação a estação, nossos temores, nossa hipocrisia, nossos limites e nossos sofrimentos. Ela culmina com uma estranha comunhão, em que G.H., no clímax de seu devaneio, come a pasta branca que escorre do corpo da barata.

É uma narrativa visceral, intimista, de um só fôlego, com um domínio incomum da primeira pessoa. Como muitos aspirantes da literatura, Clarice pratica uma espécie de escrita espontânea, em que as palavras vão da mente ao papel numa torrente de sentimentos e ideias. Num fluxo de consciência ininterrupto, ela “põe tudo para fora”. Mas, ao contrário desses aspirantes, cujas obras costumam ser um exercício sofrível de narcisismo e autocomiseração, a sofisticação e o talento de Clarice se encarregaram de produzir uma obra-prima. Seu estilo é gorduroso, cheio de desvãos e palavras que sobram (ela não revisava os textos depois de enviá-los ao editor). As ideias vêm, vão, voltam e tornam a ir embora, para mais uma vez voltar. O efeito é único. Muito escritor – ou escritora – de primeira viagem adoraria escrever como Clarice. Só ela consegue.

Judia nascida na Ucrânia, Clarice chegou com 2 anos ao Brasil, naturalizou-se e sempre se considerou pernambucana. Casada com diplomata, morou muitos anos fora do país e escreveu o romance depois de se separar do marido e voltar ao Rio de Janeiro. O livro saiu em meio ao clima tenso que vivia o Brasil de 1964. Demorou mais de 50 anos para o público brasileiro entender que Clarice Lispector é um nome que deve figurar ao lado de Machado de Assis, Carlos Drummond de Andrade ou Guimarães Rosa. Moser a considera também o “maior escritor judeu” desde Franz Kafka – com quem ela ainda partilha um improvável fascínio por baratas. A descoberta de Clarice pelos americanos poderá contribuir para lhe conferir o lugar merecido na literatura mundial e para revelar lá fora uma faceta inesperada e mais complexa do Brasil. 








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