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Biografia dos Románovs explica de onde vem o gene autoritário de Putin

Biografia dos Románovs explica de onde vem o gene autoritário de Putin

O historiador britânico Simon Sebag Montefiore escreveu um longo retrato da dinastia Románov que ajuda a entender a autocracia dos dias atuais

RUAN DE SOUSA GABRIEL
27/12/2016 - 08h00 - Atualizado 27/12/2016 13h06
Putin (Foto: Montagem sobre foto: Daniel Graf )
OS GRANDES Montagem em que o presidente russo, Vladimir Putin, aparece no corpo de Pedro, o Grande. Os dois enxergam o poder de forma semelhante, diz o autor da biografia dos Románovs (capa ao lado) (Foto: Divulgação)

No verão de 1918, quando fuzilaram o czar Nicolau II, sua mulher e seus cinco filhos, os bolcheviques extinguiram a dinastia Románov, que conduzira a Rússia com punhos de aço durante três séculos. As balas comunistas, porém, não foram capazes de destruir a cultura política representada pelos czares: uma autocracia sagrada apoiada num círculo restrito de aliados e num Exército forte e expansionista. A doutrina Románov sobreviveu aos conselhos operários soviéticos, às reformas de Mikhail Gorbatchóv e ao liberalismo cambaleante de Boris Iéltsin. E, em pleno século XXI, sustenta o governo do presidente russo, Vladimir Putin. “O modo autocrático como Putin governa, com a ajuda de uma pequena comitiva de cortesãos, tomando decisões em segredo, é muito similar ao modo como os Románovs governavam”, afirma o historiador britânico Simon Sebag Montefiore, autor de Os Románov: 1613-1918 (Companhia das Letras, 910 páginas, R$ 89,90), uma biografia da célebre dinastia que examina a psicologia do poder e a natureza da autocracia na Rússia. Montefiore conhece como poucos a história do país. Escreveu dois elogiados retratos de Josef Stálin e uma biografia de Grigory Potemkin, primeiro-ministro e amante de Catarina, a Grande.

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Os Románovs ascenderam ao trono em 1613, com a coroação de Miguel I, um menino de 16 anos de saúde frágil. Não foi fácil convencê-lo a assumir o trono. A Rússia passava pelos Tempos Turbulentos, um período marcado por guerras e instabilidade política inaugurado pela morte do czar Ivan, o Terrível, o último representante da antiga linhagem dos Riúriks. Miguel inaugurou uma bem-sucedida dinastia, abençoada pela Igreja Ortodoxa e pelos boiardos, o escalão máximo da nobreza, e dependente da lealdade dos quartéis. “Os Románovs sabiam que, para permanecer no poder, mesmo um autocrata deve equilibrar interesses, respeitar a aristocracia e fortalecer o Exército”, diz Montefiore.

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Os czares Románov conseguiram unificar o país e concentrar o poder em suas mãos jogando com os interesses dos boiardos. Eles não se casavam com princesas europeias, mas escolhiam suas consortes entre as filhas da nobreza provinciana em “desfiles de noivas”, uma espécie de concurso de beleza no qual o prêmio era o trono da Rússia. As famílias mais influentes recorriam a conspirações e envenenamentos para emplacar suas candidatas. As moças rejeitadas eram deportadas para a Sibéria com enxoval e tudo. Essa política de casamentos e alianças com famílias poderosas garantia que o mando imperial chegasse às fronteiras mais distantes do país.

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Os Románovs tinham uma inegável vocação expansionista – sob seu domínio, o Império Russo aumentou cerca de 140 quilômetros quadrados por dia. O auge dessa política imperialista se deu durante o reinado de Pedro, o Grande, mais bem-acabado símbolo da relação ambígua que os czares mantinham com o Ocidente. Pedro instituiu os bons modos franceses na corte moscovita e se aproveitou dos avanços técnicos europeus para promover uma rápida militarização da Rússia e expandir seus domínios. “Pedro queria modernizar a Rússia e usar a tecnologia ocidental para torná-la mais eficiente, mas ele também acreditava no poder ilimitado da autocracia”, afirma Montefiore.

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A vida íntima dos czares não ficou de fora de Os Románov. São páginas e mais páginas repletas de conspirações palacianas, disputas familiares, assassinatos, luxo e estripulias sexuais. Alexandre II, um czar modernizador, responsável por libertar os servos e reformar as instituições judiciais, era um atleta sexual capaz de fazer Henrique VIII – o licencioso rei inglês que patrocinou uma reforma religiosa só para se divorciar e se casou seis vezes – parecer um menino de colégio. Ele foi morto por revolucionários em 1881. Seis dos 12 czares Románov foram assassinados – dois à bala, um com dinamite, um com uma adaga e dois por asfixia. Não era incomum que os monarcas fossem paranoicos e não descuidassem jamais da própria segurança. Pedro, o Grande, supervisionava pessoalmente a tortura de seus inimigos.

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A cultura política russa pouco mudou depois da queda do czarismo. Os bolcheviques deram continuidade aos modos políticos dos Románovs: abusaram do autoritarismo, esmagaram opositores, transformaram a União Soviética numa potência militar e combateram os valores ocidentais como uma questão de honra revolucionária. Após a derrocada do comunismo, a terrível herança dos Románovs provou estar mais viva do que nunca na corte de Vladimir Putin, que assumiu o poder em 1999, como primeiro-ministro. Putin tem boa parte dos atributos que, segundo Montefiore, definiam um czar: os punhos de aço, o militarismo, as rusgas com o Ocidente, a paranoia, a comunhão com a Igreja Ortodoxa e a crença de que é missão russa combater a decadência dos valores morais. “Putin é um híbrido de Románov e Stálin, mas, ainda assim, singular e moderno”, diz Montefiore.

Soldados ucranianos se preparam a resistir á invasão russa da Crimeia (Foto: The Asahi Shimbun via Getty Images)

Putin governa apoiado na fidelidade dos boiardos modernos, um bando de oligarcas que soube aproveitar a ruína do comunismo para fazer fortuna. Num livro recente, All the Kremilin’s men (Todos os homens do Kremlin, na tradução do inglês), o jornalista russo Mikhail Zygar afirma que a deslealdade ainda é o pior crime que se pode cometer na paranoica corte de Putin. As reformas implementadas por Boris Iéltsin nos anos 1990, que diminuíram o poder de Moscou, foram revogadas por Putin. Em 2013, ele aprovou uma lei que lhe dá o poder de escolher os governadores das repúblicas, como forma de recentralizar a administração e enfraquecer a autonomia regional. Como primeiro-ministro, derrotou os rebeldes tchetchenos – o Cáucaso era uma zona de litígio desde os tempos da Monarquia – e assim acumulou capital político para assumir a Presidência em 2000. Putin também se acostumou a pôr exércitos em marcha para manter a ordem no antigo quintal do antigo Império Russo, que engloba o Leste Europeu e países asiáticos. “A política externa de Putin, com suas grandiosas aventuras militares, como a tomada da Crimeia e as intrigas com a Ucrânia, é herança direta dos Románovs”, afirma Montefiore.

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Putin também reabilitou a principal aliada do czarismo: a Igreja Ortodoxa. As cerimônias de coroação dos Románovs procuravam conferir uma aura sagrada à autocracia russa. O último casal real, Nicolau II e Alexandra, era famoso por sua religiosidade. Nenhuma devoção, porém, se compara à de Alexei, o segundo czar Románov, que ganhou o apelido de Jovem Monge. Alexei promoveu uma cruzada moral contra as diversões mundanas, orava sem cessar e afogava os boiardos que não iam à missa. Putin promoveu a reconciliação do governo com a Igreja Ortodoxa, que sofrera perseguição durante o período soviético, e transformou-a em arma geopolítica. Em países do antigo bloco socialista, como a Moldávia, os ortodoxos trabalham para boicotar aproximações com a União Europeia. Discípulo do czar Alexei, Putin patrocina uma cruzada contra a homossexualidade e denuncia a decadência dos valores tradicionais. O maior exemplo da aliança entre o poder temporal e a Igreja foi a prisão das roqueiras da banda Pussy Riot. Em 2012, num show improvisado na Catedral de Cristo, o Salvador, elas fizeram uma “oração punk” e rogaram à mãe de Deus que livrasse a Rússia de Putin. Acabaram condenadas por “vandalismo” e “incitação ao ódio religioso”.

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Montefiore escreveu um daqueles livros de história que iluminam o presente – ou denunciam suas trevas. Os Románovs construíram uma cultura política tão sólida que sobre ela Putin ergue uma versão repaginada da velha autocracia que os bolcheviques tentaram derrubar. Quase 100 anos após o fuzilamento do último czar, o espectro autoritário dos Románovs ainda ronda a Rússia.








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