Cultura

Reedições celebram o centenário de Campos de Carvalho, o assassino da lógica

Reedições celebram o centenário de Campos de Carvalho, o assassino da lógica

Há anos fora de catálogo, A lua vem da Ásia volta às livrarias. Outros três romances e uma coletânea de inéditos e dispersos saem em 2017

RUAN DE SOUSA GABRIEL
22/12/2016 - 16h41 - Atualizado 22/12/2016 18h33

A primeira frase de A lua vem da Ásia, romance de Walter Campos de Carvalho (1916-1998), resume bem o projeto literário do escritor mineiro: “Aos dezesseis anos, matei meu professor de Lógica”. Em seus quatro livros (seis, se consideramos Banda forra e Tribo, que ele renegou), Campos de Carvalho subverte a lógica e, por meio de uma prosa lúcida e obediente às regras da sintaxe, conduz o leitor por caminhos tortuosos que combinam discursos delirantes e tingidos de surrealismo, associações livres tragicômicas e conceitos de razão e loucura que se confundem.

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A lua vem da Ásia, publicado em 1956, é o diário de Astrogildo, o assassino do professor de lógica. Enclausurado num hospício que junta as mordomias de um hotel de luxo com as torturas cruéis de um campo de concentração, Astrogildo narra seu cotidiano ao lado dos outros malucos e recorda os tempos em que traficava diamantes, deflorava as filhas de políticos e atravessava os mares nadando crawl. A lua vem da Ásia amargou anos fora de catálogo, mas volta às livrarias numa edição da Autêntica, que celebra o centenário de Campos de Carvalho, completado em 1º de novembro. Os outros três romances do escritor – Vaca de nariz sutil, A chuva imóvel e O púcaro búlgaro – serão reeditados no decorrer de 2017. Uma coletânea de inéditos e dispersos também sairá no ano que vem.

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Topar com romances de Campos de Carvalho nas livrarias não é tarefa fácil. Suas obras completas foram editadas pela última vez em 1995, pela José Olympio. A nova edição de A lua vem da Ásia assinala o retorno de um filho pródigo do mercado editorial. Depois de publicar O púcaro búlgaro, em 1964, um romance hilário no qual um homem organiza uma expedição para descobrir (ou, se preciso for, inventar) a Bulgária, Campos de Carvalho abandonou a literatura. Na década seguinte, assinou crônicas em O pasquim e em jornais paulistas – e se calou. Exilou-se num apartamento em São Paulo ao lado de sua mulher, Lígia, e não deu satisfação a ninguém. “Eu deixei de escrever porque deixei”, disse. “Eticamente, esse isolamento depõe a seu favor, pois mostra que ele não estava nem aí para a política literária e o mundanismo cultural”, afirma o poeta, tradutor e ensaísta Claudio Willer. Na definição do cronista Antonio Prata, cuja avó paterna era prima-irmã do escritor mineiro, Campos de Carvalho se tornou “o escritor obscuro mais famoso do Brasil” ou “o escritor famoso mais obscuro do Brasil”.

O escritor mineiro Campos de Carvalho (Foto: Divulgação)


 

A lua vem da ásia (Foto: divulgação)


 

O atrevimento dos romances de Campos de Carvalho tampouco o ajudou a conquistar a simpatia dos críticos literários mais sisudos. Leitores conservadores se escandalizavam com as páginas irreverentes daquele mineiro ateu e anarquista que escrevia textos heréticos, quase pornográficos, com personagens marginais e deboche dos valores burgueses. Parte da esquerda rejeitou sua literatura nada engajada, capaz de fazer piada até com a Bulgária, pátria do proletariado. O cineasta Glauber Rocha o acusou de “alienado” nas páginas de O pasquim; o comunista Jorge Amado, por sua vez, o cobria de elogios.

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Embora iconoclasta, a obra de Campos de Carvalho não se descola da tradição. A lua vem da Ásia, por exemplo, remete ao conto “O alienista” de Machado de Assis (escritor de quem o mineiro dizia não gostar), que também recorre à ironia para demolir o muro que separa a loucura da lucidez. “Campos de Carvalho segue uma vertente marginal na literatura brasileira, que se choca com o realismo por ser mais onírica e próxima do absurdo e do surrealismo”, afirma Willer. “Ele adotou rigorosamente o ‘inconformismo absoluto’ dos surrealistas.” “A prosa não linear e inusitada de Campos de Carvalho antecipa a angústia do homem urbano e fragmentado, que tenta se encontrar ou se perder de si mesmo, que encontramos hoje nos livros de João Gilberto Noll e Luiz Ruffato”, diz Juva Batella, autor de Quem tem medo de Campos de Carvalho? (7Letras).

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Longe das livrarias, o homem surreal-marginal de Campos de Carvalho foi morar no teatro. Em 2007, o diretor teatral Aderbal Freire-Filho apostou numa transposição literal – palavra por palavra – de O púcaro búlgaro para os palcos. A companhia paulista Os Parlapatões montou Vaca de nariz sutil no ano seguinte. E, em 2011, o ator Chico Diaz transformou A lua vem da Ásia num monólogo. “Esse é um livro que permanece muito atual ao discutir questões como o aprisionamento do pensamento, a solidão, a linguagem que constrói e destrói e o imaginário como possibilidade de fuga”, afirma Diaz, que adaptará a obra para o cinema. Ele será Astrogildo, o louco narrador, e Marieta Severo a mãe que ele vende. Para transpor a prosa onírica de Campos de Carvalho para as telas, Diaz recorrerá às mais diversas possibilidades da linguagem cinematográfica, como animações, locações improváveis, imagens de arquivo e citações de outros filmes.

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Campos de Carvalho explica seu programa de subversão da lógica numa passagem de A lua vem da Ásia: Astrogildo pensa que vê um quadro de Picasso na parede, mas descobre que, na verdade, era um espelho “sem brilho e quase surrealista” a refletir a realidade. “Campos de Carvalho não é nonsense”, diz Antonio Prata. “Ele contorce a lógica para mostrar as injustiças e os absurdos do mundo. Ele é muito racional.” Prata recorda de outra passagem de Campos de Carvalho que serve como chave de leitura para sua obra: um personagem de O púcaro búlgaro costumava repetir que a Torre de Pisa não estava torta, mas era a única coisa reta no mundo.

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Campos de Carvalho dizia não crer em Deus nem crer que Deus cresse nele. Na ironia, porém, suspeita-se que ele acreditasse. No dia 10 de abril de 1998, ele saiu para tomar um sorvete, passou mal e morreu de ataque cardíaco. Era Sexta-Feira da Paixão. O escritor foi enterrado naquele fim de semana. Quem carregou o caixão foram primos distantes, como Prata e seu pai, o também escritor Mário Prata, e o motorista do carro funerário, que se chamava Jesus. O professor de lógica estava vingado.








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