Cultura

O mausoléu da ABL tem poucas vagas – e a fila continua andando

O mausoléu da ABL tem poucas vagas – e a fila continua andando

A disputa por espaço rendeu até ação na Justiça

MARCELO BORTOLOTI
22/01/2017 - 10h00 - Atualizado 22/01/2017 10h00
DESCANSO ETERNO  O interior do jazigo coletivo dos integrantes da Academia. No atual ritmo de ocupação, o mausoléu atingirá lotação máxima em cinco anos (Foto: Stefano Martini/ÉPOCA)

"Sou imortal porque não tenho onde cair morto”, costumava dizer jocosamente o poeta Olavo Bilac ao ser questionado sobre essa designação tão pretensiosa dada aos integrantes da Academia Brasileira de Letras. Ele queria relativizar a prepotência do termo “imortal”, cujo sentido original não tem relação com a morte, mas com o esquecimento. Um autor que entrou na Academia seria imortal porque deixou atrás de si uma obra que será lida e discutida pelas gerações futuras. No plano material, os acadêmicos morrem aos borbotões e, nos últimos anos, ao contrário daqueles tempos duros de Bilac, têm onde cair mortos – no mausoléu da Academia, no Cemitério São João Batista, no Rio de Janeiro. Nesse espaço nobre são enterrados os escritores e suas mulheres, para que descansem pela eternidade.

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O jazigo coletivo fica no alto de uma colina, com vista para o Cristo Redentor. É o ponto alto dos roteiros turísticos promovidos nesse cemitério, pois ali é possível estar próximo de túmulos famosos, como o dos escritores Manuel Bandeira, Guimarães Rosa e João Cabral de Melo Neto. Para a Academia, instituição formada sobretudo por velhinhos, o jazigo coletivo é um espaço cada vez mais concorrido. E a convivência nesse ambiente cheio de egos imortais nem sempre é tranquila. No começo do mês passado, a chegada do poeta Ferreira Gullar ao local pacificou um constrangimento que durava mais de uma década. Gullar foi sepultado no túmulo de número 27, que no passado foi objeto de uma estranha polêmica.

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Antes dele, quem ocupava esse mesmo túmulo era o antropólogo e político Darcy Ribeiro. Darcy morreu em 1997, comovendo o país. Ele havia sido eleito senador pelo PDT, desenvolveu um câncer, mas cumpriu o mandato até o final – definhou publicamente. O cortejo de seu corpo até o cemitério se deu num carro dos Bombeiros e foi acompanhado por uma multidão. O enterro teve participação da bateria da Mangueira, discurso de Leonel Brizola, que falou durante uma hora, e coroa de flores enviada por Fidel Castro.

Para abrigar o morto ilustre, a Academia estava sem espaço no mausoléu e teve de desalojar o pouco conhecido escritor Elmano Cardim, que descansava com a mulher naquele mesmo túmulo de número 27. Os restos mortais do casal foram exumados e colocados em nichos destinados a esse fim, nas paredes laterais. Passada a comoção do enterro, veio o Dia de Finados e o filho de Cardim foi até o cemitério com um vaso de flores nas mãos para visitar os pais. Tomou um susto ao não encontrá-los mais no túmulo, de onde até o letreiro havia sido removido. Lá, brilhava um novo nome: Darcy Ribeiro.

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Não foi uma troca qualquer. Elmano Cardim era um homem de ideias conservadoras. Como jornalista, ficou conhecido pelos editoriais que escreveu para o Jornal do Commercio, leitura obrigatória de empresários e políticos de direita. No discurso de recepção da Academia, foi saudado como um “liberal de molde conservador, um incrédulo na eficácia das revoluções”. Darcy estava do outro lado do espectro político. Foi chefe da Casa Civil na gestão de João Goulart, interrompida pelos militares, e vice de Brizola quando este foi governador no Rio de Janeiro. Idealizou os Centros Integrados de Educação Pública (Cieps) e o Parque Nacional do Xingu.

Para Elmano Júnior, filho do escritor, a troca justamente por Darcy fora uma afronta à memória do pai. Sua primeira reação foi brigar com o coveiro. Depois processou a Academia pelo dano moral, e ganhou uma indenização de 100 salários mínimos, numa das causas mais caras já perdidas pela instituição. “O Darcy tinha um pensamento muito diferente do meu pai, por isso fiquei chateado. O nome dele ficou por cima e ainda dava para ver a marca do letreiro apagado com o nome do meu pai por baixo”, diz Elmano Júnior.

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A indenização foi paga, mas a chaga continuou exposta. Com o ingresso de Ferreira Gullar no túmulo 27 a honra dos Cardins foi lavada. E a solução também não desconforta a memória de Darcy. Gullar tanto pode ser evocado como o poeta de esquerda, sua marca nos anos 1960, e nesse sentido alinhado com as ideias do antropólogo que substituiu, como o intelectual mais conservador dos últimos anos de vida, quando se tornou crítico severo dos governos Lula e Dilma. O desfecho conciliador, no entanto, não apazigua todas as tensões pendentes no concorrido mausoléu. A substituição de um morto pelo outro é necessária, pois existem apenas 32 túmulos. Passado o tempo exigido para a exumação, de três anos no mínimo, os restos do escritor podem ser retirados e colocados nos nichos, que são em número de 90. E os problemas começam por aí.

Os acadêmicos morrem a uma média de três por ano. Somente na presidência de Alberto da Costa e Silva, que durou dois anos, morreram sete. “Atualmente, temos quatro em estado grave de saúde. Sem falar nos que correm por fora. Ferreira Gullar, por exemplo, estava ótimo, pegou uma gripe e morreu”, diz um amigo da casa que prefere não se identificar. Hoje, dos 32 túmulos, apenas dois estão disponíveis. Para abrir novas vagas, é preciso fazer novas exumações. Isso esbarra em interesses de familiares e na burocracia. Os critérios de escolha de quais mortos deverão deixar o túmulo para ser substituídos por outro são obscuros. O escritor mineiro Cyro dos Anjos, que morreu em 1994, ficou apenas quatro anos no túmulo antes de ser transportado para o nicho. O dramaturgo Dias Gomes ocupou o seu por nove anos até ser exumado. Antônio Callado foi exumado em 11 anos e Adonias Filho em oito. Já Austregésilo de Athayde, que foi o presidente da Casa e construiu o mausoléu, ocupa um túmulo há 23 anos e ainda não foi removido. A Academia não esclarece o motivo.

Alguns casos são de solução difícil. Ribeiro Couto, escritor muito importante para a geração dos modernistas e hoje pouco lembrado, está no mesmo túmulo há 53 anos. Ele era diplomata e morreu na França. Para transportar o corpo ao Brasil, as autoridades decidiram embalsamá-lo. Desde então, ele está preservado tal como foi enterrado e não pode ser exumado. Há situações inexplicáveis como a do jurista alagoano Francisco Pontes de Miranda, que discutiu com Albert Einstein apontando falhas em sua teoria sobre a curvatura do Universo e deixou publicada uma montanha de mais de 300 livros. Ele morreu em 1979 e desde então ocupa o mesmo túmulo no mausoléu.

O jazigo dos imortais foi construído em 1962, para reduzir o custo da Academia com os enterros, que era enorme. Todo escritor que ingressa na instituição tem direito a um espaço ali. Para lá foram levados os restos mortais de Machado de Assis, fundador da Academia, que morreu em 1908. Machado deixou expresso em testamento que não gostaria de ser separado da mulher. Por isso, Carolina também foi transportada para lá. Desde então, o regulamento permite que os acadêmicos sejam sepultados com suas mulheres.

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Hoje, as mulheres ocupam uma parte considerável do mausoléu, às vezes com certos excessos. O poeta João Cabral, que casou duas vezes, levou as duas. A escritora Nélida Piñon, solteira, continua viva, mas já levou a mãe. Com o passar dos anos, os nichos também começaram a lotar. Atualmente, dos 90, restam apenas 17 vazios, o que pode levar o mausoléu à lotação máxima em cinco anos, numa perspectiva otimista. O tema é tabu na instituição. “Falar em vaga no mausoléu é a última coisa que os acadêmicos querem. A faixa etária aqui é muito elevada e todo mundo prefere deixar o assunto de lado”, diz o atual presidente da Academia, Domício Proença Filho. Em breve os imortais voltarão a não ter mais onde cair mortos, como nos tempos de Bilac.

AS CATACUMBAS DA ACADEMIA (Foto: Época )







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