Cultura

Luiz Lopes Coelho, o escritor boêmio que criou um detetive bossa-nova

Luiz Lopes Coelho, o escritor boêmio que criou um detetive bossa-nova

A reedição dos contos recupera a obra do pioneiro do gênero policial no país e criador do Doutor Leite, um Sherlock Holmes tropical

RUAN DE SOUSA GABRIEL
24/03/2017 - 08h00 - Atualizado 24/03/2017 10h57
UÍSQUE E LEITE Montagem inspirada na reedição dos contos de Lopes Coelho (acima). Ele gostava da companhia de  boêmios como  Vinicius de Moraes  (no centro) (Foto: Montagem de Daniel Graf,  sobre fotos de Thinkstock, Shutter, Última Hora/Folhapress, reprodução e divulgação)

Quando o escritor e advogado paulistano Luiz Lopes Coelho (1911-1975) morreu, a tradicional Faculdade de Direito do Largo São Francisco, em São Paulo, onde ele se formara, prestou-lhe uma simpática homenagem: “Herói da Revolução de 32, constitucionalista, escritor, gênio, bom copo, degustador dos melhores pratos, grande apreciador da mulher brasileira”. A nota resume bem a índole de Lopes Coelho, que se equilibrava entre o rigor do Direito Comercial e a boemia paulistana. Ele foi um dos fundadores do Clubinho, reduto da intelectualidade festiva no centro, e circulava pelos meios artísticos da cidade. Dirigiu a Fundação Cinemateca Brasileira, foi diretor presidente da Associação dos Amigos do Museu de Arte Moderna, membro do Conselho Consultivo da Fundação Bienal e advogado do poeta modernista Oswald de Andrade (1890-1954). A maior contribuição de Lopes Coelho para a arte pátria se deu no campo da literatura: ele foi pioneiro do gênero policial e criou o primeiro detetive brasileiro a bater ponto em mais de uma história, o Doutor Leite. Publicou três livros de contos policiais: A morte no envelope (1957), O homem que matava quadros (1961) e A ideia de matar Belina (1968) – que vendeu mais de 50 mil exemplares. Críticos tarimbados como Sérgio Milliet e Otto Maria Carpeaux adoravam as aventuras do Doutor Leite. Após a morte do autor, os livros de Lopes Coelho foram sumindo das livrarias, mas acabam de ser reeditados como Contos reunidos (Sesi-SP Editora, 408 páginas, R$ 69), num belo volume ilustrado com colagens do artista plástico Zé Vicente.

Contos reunidos, de Luiz Lopes Coelho (Foto: Divulgação)

O primeiro romance policial brasileiro era um folhetim com um título um tanto óbvio: O mistério. Escrito a oito mãos por Coelho Neto (poeta parnasiano), Afrânio Peixoto, Medeiros de Albuquerque e Viriato Corrêa, foi publicado em 47 capítulos no jornal carioca A Noite entre 20 de março e 20 de maio de 1920. O mistério era protagonizado pelo Major Mello Bandeira, um investigador cerebral inspirado em Auguste Dupin, detetive criado quase um século antes por Edgar Allan Poe, o escritor americano que formatou o gênero policial. Nas décadas seguintes, outros autores brasileiros arriscaram escrever histórias de mistério, mas era comum que se valessem dos clichês do gênero para arrancar gargalhadas dos leitores. Lopes Coelho manteve o bom humor, mas adicionou a geografia urbana (de São Paulo, no caso), deu profundidade psicológica aos personagens e ambiguidade moral aos criminosos, concebeu uma estrutura sólida que só revela a solução do mistério nas últimas linhas e um detetive que descobre quem foi o assassino usando as “células cinzentas”, como dizia o Hercule Poirot de Agatha Christie.

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Doutor Leite – “o delegado dos crimes de mistério” – é um detetive à moda inglesa: combate o crime usando o intelecto, não os músculos. No tempo em que ele perambulava pelas ruas de São Paulo à caça de malfeitores, esse tipo de detetive cerebral estava quase aposentado, especialmente nos romances policiais americanos, movidos a álcool, dólares, pancadaria e louras curvilíneas. Doutor Leite encara o mistério como um problema lógico a ser decifrado pelo raciocínio, não como uma luta moral entre mocinhos e bandidos. No conto “Só o crime estava na biblioteca”, o delegado descobre quem matou o banqueiro Monsanto sem se levantar da cama do hospital onde está confinado por causa de uma perna fraturada.

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Doutor Leite é também um detetive bossa-nova – aquela fleuma dos detetives europeus não resistiu ao sol dos trópicos e derreteu. O delegado paulistano não é melancólico como Sherlock Holmes ou avesso às mulheres como Dupin. “Simpático e bonitão”, beirando os 50 anos, o delegado conserva uma farta cabeleira grisalha, gosta de beber uísque deitado na rede e não perdoa nem viúva recente. “A primeira vez que eu li Lopes Coelho pensei que um detetive chamado Leite não podia dar certo, isso não é nome que se apresente. Mas fiquei impressionado com o método de trabalho dele, baseado em deduções e sem violência, como Sherlock Holmes”, diz Mario Prata, escritor e estudioso do gênero policial. Prata não vê herdeiros de Lopes Coelho na produção detetivesca nacional, que, segundo ele, é mais influenciada pela  brutalidade americana do que pelo racionalismo da escola inglesa.

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O personagem foi inspirado num policial que existiu: João Leite Sobrinho, delegado de Homicídios em São Paulo e amigo de copo de Lopes Coelho. Isabel Lopes Coelho, que é neta do escritor e também gosta de livros – é editora da FTD Educação e trabalhou na saudosa Cosac Naify –, acredita que os detalhes do ofício detetivesco vieram do convívio com o Leite de carne e osso, mas o temperamento do Leite fictício espelha o de seu avô.  “Meu avô era muito brincalhão”, diz. “Faz sentido que o personagem tenha uma alegria, uma leveza e não seja só o espertalhão que vai desvendar o crime.” Não é incomum que os detetives da ficção emprestem características de seus autores. Rubem Fonseca foi policial num bairro operário do Rio de Janeiro e seu detetive, o advogado Mandrake, sabe que  “a cidade não é aquilo que se vê do Pão de Açúcar”. Luiz Alfredo Garcia-Roza, psicanalista e professor universitário de renome, criou o delegado Espinosa, um sujeito introspectivo, inteligente, que gosta de livros e das ruas do Rio antigo. Mario Prata aliou um humor fino e inteligente à paisagem de Florianópolis para compor as aventuras do detetive Ugo Fioravanti e seu parceiro, Darwin Matarazzo.

BOÊMIO ATLETA Lopes Coelho no tempo de jogador do São Paulo, na década de 1930. Abaixo, charge do Doutor Leite feita pelo artista Aldemir Martins (Foto: Acervo pessoal/Reprodução)

Lopes Coelho era um boêmio. Vários de seus contos se passam em ambientes artísticos, como teatros, e fazem  referências às artes plásticas. Num deles, um maluco perambula pelo bairro chique de Higienópolis a retalhar obras de arte de famílias distintas. Assim como Doutor Leite, Lopes Coelho era simpático, bom de papo e apreciador de um bom uísque. Contava causos como ninguém. Quando publicou O homem que matava quadros, o presidente do Brasil era Jânio Quadros, de quem Lopes Coelho se dizia amigo. O escritor mandou um recado brincalhão ao presidente pedindo licença para manter o título, que assassinava o sobrenome do político. A resposta veio num telefonema de Oscar Pedroso, ministro da Justiça: Jânio disse que Lopes Coelho não precisava ter receio. Ele também era amigo da redação do irreverente semanário O Pasquim e dos escritores mineiros Fernando Sabino e Paulo Mendes Campos, com quem aprontava estripulias dignas dos contos do Doutor Leite. Uma das traquinagens consistia em os mineiros dispararem balas de festim contra o escritor paulista, que simulava uma morte cinematográfica, escorando-se no muro e, depois, rolando até o meio-fio da calçada. Dizem que ele também conseguia, com uma pernada só, arremessar um sapato frouxo a 20 metros de distância e ainda acertar o alvo. Toda essa habilidade com os pés talvez fosse resquício de seus tempos de jogador do São Paulo Futebol Clube. Entre 1930 e 1933, ele foi ponta e meia-direita do tricolor tricampeão mundial.

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Lopes Coelho publicou 33 contos policiais – 23 deles estrelados pelo Doutor Leite – e alguns poemas. Deixou um punhado de contos inéditos, datilografados e presos com um clipe. Isabel, a neta-editora, conta que não encontrou nenhum documento do avô no qual ele expusesse como queria que esses contos fossem organizados para publicação ou se eram apenas exercícios ou narrativas descartadas por algum motivo. Doutor Leite aparece em boa parte desses contos – as habilidades dedutivas do delegado continuaram afiadas. “Meu pai e meu tio contam que meu avô tinha planos de aposentar o Doutor Leite, mas não deu tempo”, diz Isabel. Numa longa entrevista ao Pasquim em 1973, Lopes Coelho revelou que preparava um quarto livro cujo título seria Receitas de crime. Nesses contos, ele pretendia explorar o banditismo de pessoas jurídicas: o sujeito que apertaria o gatilho seria apenas um prestador de serviço. Os verdadeiros criminosos seriam empresas grandes e gananciosas. Otto Maria Carpeaux sugeriu que o Doutor Leite ensinasse uma ou outra lição para a Polícia Técnica de São Paulo e do Rio de Janeiro. Talvez esses contos inéditos escondam valiosas lições do “delegado dos crimes de mistério” para combater a delinquência motivada não pelas paixões humanas, mas pela cobiça e pelos interesses econômicos de algumas empresas que estão na mira da Justiça.








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