Cultura

Noemi Jaffe: “A literatura causa espanto, mas não muda o mundo”

Noemi Jaffe: “A literatura causa espanto, mas não muda o mundo”

A escritora Noemi Jaffe aproveitou a Flip para criticar a cegueira social diante da barbárie

RUAN DE SOUSA GABRIEL| PARATY (RJ)
28/07/2017 - 19h03 - Atualizado 28/07/2017 19h42
Noemi Jaffe (Foto: Walter Craveiro)

Na noite de quinta-feira (27), a escritora Noemi Jaffe participou da mesa “Em nome da mãe” ao lado da escritora ruandesa Scholastique Mukasonga na 15ª Festa Literária Internacional de Paraty (Flip). Noemi aproveitou para explicar o título de seu romance O que os cegos estão sonhando? (Editora 34, 240 páginas, R$ 49), no qual ela se debruça sobre a terrível experiência da mãe, Lili Jaffe, que foi prisioneira em Auschwitz. Ela contou que, um dia, enquanto escrevia o romance, recebeu uma ligação da mãe que, curiosa, perguntava: “Noemi, o que os cegos estão sonhando?”. A mãe de Noemi é sérvia e, apesar de viver no Brasil há décadas, ainda confunde algumas coisas no português, como o presente do indicativo (o que os cegos sonham) com o presente contínuo (o que os cegos estão sonhando). Naquele momento, Noemi descobriu o título do romance que estava escrevendo. E, junto com a mãe, se pôs a interpretá-lo: os cegos são todos aqueles que são incapazes de enxergar as atrocidades cometidas diante de seus olhos: a barbárie nazista, o extermínio dos tútsis em Ruanda, o assassinato covarde de um carroceiro num bairro de classe média em São Paulo. Na tarde desta sexta-feira (28), Noemi estendeu o assunto com ÉPOCA e falou sobre cegueira, sonhos e, é claro, literatura.

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ÉPOCA – O título de seu romance O que os cegos estão sonhando? é uma referência à cegueira diante da barbárie. Nós continuamos cegos?
Noemi Jaffe –
Sim, nós continuamos cegos às mesmas coisas. Há muita violência. Um carroceiro foi morto pela Polícia Militar em Pinheiros [bairro da Zona Oeste de São Paulo] há duas semanas. Eu fui à manifestação organizada em protesto, mas havia muito pouca gente, apesar de tanta gente ter visto o que aconteceu, porque fui numa região muito central da cidade. Apesar de as pessoas ficarem muito chocadas com o que acontece, parece que estamos anestesiados, impotentes, inertes. Há uma frase do Modesto Carone [tradutor] sobre o [Franz] Kafka [escritor judeu, 1883-1924]: “Espantoso é que o espantoso não espanta mais”. Isso é um pouco de cegueira, quando a gente perde a capacidade de se espantar, fica com preguiça de se espantar ou sabe que o espanto não fará diferença nenhuma.

ÉPOCA – A literatura pode nos ajudar a ver?
Noemi –
A literatura não é muito poderosa, não. Em termos de transformações sociais e políticas, é pouco o que a literatura pode fazer. Num país como o Brasil, pouca gente lê. Apesar de poder fazer pouco, a literatura é capaz de fazer com que os indivíduos que se deixam tocar e mobilizar pela palavra literária se sintam um pouco deslocados em relação à vida que levam. E isso é importante. A vida é complicada, exige que a gente viva num tipo de trilho. Se a gente sai do trilho, não consegue fazer tudo o precisa fazer. Mas a literatura permite que saiamos do trilho, que nos desloquemos. E, nesse deslocamento, a gente abre os olhos e percebe o quanto não estamos nos espantando. A literatura parte do espanto e provoca o espanto, mas não é capaz de mudar o mundo.

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ÉPOCA – Nesta edição da Flip, está se falando muito de política. A senhora mesma falou de política em sua mesa. Qual o lugar da política na literatura e nos eventos literários?
Noemi –
Fazer literatura é uma decisão política. Por várias razões. A mais óbvia: fazer literatura no Brasil é um absurdo, é quase um suicídio, é optar por um ofício que não te dá receita, respostas e só uns poucos leitores. É optar por uma vida com pouca repercussão. Mas a linguagem literária é muito política, é subversiva, porque ela não fala nos trilhos, mas fora dos trilhos. A linguagem literária parte de uma perspectiva não burocrática, não funcional e, portanto, política. O ato de escrever é político. Agora, o conteúdo político dos livros depende muito... Eu gosto de quem opta por fazer uma literatura decididamente política, como o Julián Fuks, que faz isso muito bem e chama a atenção para questões políticas atuais. Livros que não falam da política de modo explícito mas despertam os leitores para questões fundamentais também têm conteúdo político importante. Não vejo necessidade de a literatura ser direta ou explícita sobre temas políticos atuais. O escritor precisa ter uma posição, saber do que está falando e por que está falando daquele jeito. Esse é um modo de ser político.

ÉPOCA – Voltando ao título: além de abrir nossos olhos, a literatura também nos ensina a sonhar?
Noemi –
Claro! Sem dúvida! Se a literatura pode nos despertar é que é o problema [risos]... A literatura é o lugar do impossível: do impossível que a gente torna possível e do impossível que permanece impossível, como cuspir coelhinhos naquele conto do [Julio] Cortázar [escritor argentino, 1914-1984]. Esse impossível do Cortázar continua impossível, mas nos permite ficar boiando no absurdo. O impossível do Kafka, esse, sim, aconteceu: nós, às vezes, nos transformamos em insetos monstruosos.

ÉPOCA – A senhora tem um certo fascínio pela linguagem e tende abordá-la com estranhamento e refletir bastante sobre a origem das palavras. Em seu novo livro Não está mais aqui quem falou (Companhia das Letras, 144 páginas, R$ 39,90), há um conto chamado “Lá”, no qual a senhora diz que sua mãe nunca entendeu a diferença entre “lá” e “aí”. Essa estranheza que identifica nas palavras é influência do modo como sua mãe lida com a língua portuguesa?
Noemi –
Sim. A protagonista do meu romance Írizs: as orquídeas (Companhia das Letras, 224 páginas, R$ 42,90) é uma húngara que estuda português porque vem morar em São Paulo e tem uma relação com as palavras que também é assim: inaugural, virginal. Como uma criança que ouve uma palavra pela primeira ver e fica decodificando a palavra foneticamente e fazendo associações poéticas porque não sabe o significado da palavra. A minha mãe tem isso com as palavras até hoje! Ela vive no Brasil há 70 anos, mas ainda está aprendendo as palavras. Ela tem essa capacidade de espanto com as palavras. Meu pai ficava indignado porque o “J” tem o som “ja-je-ji-jo-ju” [risos]... Em sérvio, “J” tem som “I”. Ele não entendia por que “vovó” e “vovô” são diferentes, as duas soavam iguais para ele, era uma loucura! Esse meu interesse pelas palavras vem deles. Minha avó também era louca por línguas. Ela aprendeu hebraico sozinha – o hebraico dela era perfeito!

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ÉPOCA – O primeiro conto de Não está mais aqui quem falou é uma releitura da história bíblica que conta como Deus pediu a seu servo Abraão que sacrificasse seu filho Isaque como prova de sua fidelidade. A senhora teve uma formação cultural judaica. Como a narrativa bíblica influencia sua literatura?
Noemi –
A Bíblia está no imaginário de todos os escritores. É um texto dos mais importantes e dos mais ricos da cultura ocidental. Eu estudei muito a Torá na escola judaica. A Torá é muito importante para autores que eu adoro, como Kafka, Walter Benjamin [alemão, 1892-1940], Martin Buber [austro-israelense, 1878-1965] e os israelenses Amós Oz e David Grossman. Todos eles falam muito da Torá. E as histórias são lindíssimas. Eu estou sempre pensando e reinterpretando essas histórias, como a história de Adão, que nomeou todas as coisas que existem. A história de Agar [escrava que teve um filho com Abraão e depois mandada para o deserto por causa dos ciúmes de Sara, a esposa legítima] é absurda! O cara tem um filho com a mulher e depois expulsa ela e o filho de casa e os manda para o deserto! É um absurdo. A história de Deus e Abraão me causa muita indignação. Que Deus inseguro é esse que precisa que Abraão prove sua fidelidade matando o filho? A Bíblia é a fonte de todos os nossos medos, tabus, repressões e desejos. Está tudo lá.








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