Ideias

Dedicatórias de livros revelam o carinho de autores a Golbery do Couto e Silva

Dedicatórias de livros revelam o carinho de autores a Golbery do Couto e Silva

A biblioteca que pertenceu ao general mostra como os escritores adulavam o estrategista da ditadura

MARCELO BORTOLOTI
12/01/2016 - 08h01 - Atualizado 12/01/2016 08h01

Depois de alinhavar a aliança entre empresários e militares que propiciou o golpe de 1964, o general Golbery do Couto e Silva ganhou fama de ser o principal estrategista político no período da ditadura. Quando morreu, em 1987, sua biblioteca foi doada à Universidade Cândido Mendes, no Rio de Janeiro. A parte mais saborosa desse acervo de 15 mil volumes são as dedicatórias contidas em suas páginas. Elas revelam a relação próxima que o todo-poderoso chefe da Casa Civil do governo Ernesto Geisel manteve com escritores, intelectuais, integrantes da Academia Brasileira de Letras (ABL). Gilberto Freyre, Rachel de Queiroz, Rubem Fonseca, João Cabral de Melo Neto, Raul Bopp, José Cândido de Carvalho, Josué Montello e Pedro Nava são alguns dos autores que enviaram publicações ao general. Nos anos de poder, ele amealhou quase 400 obras autografadas, nas quais é chamado de “notável brasileiro”, “eminente patrício”, “compadre”, “companheiro de estudos”, “ilustre brasileiro que muito admiro”, aquele “cujo pensamento vem sendo a inspiração do país”.  Esses breves textos ilustram as teias que se formavam em torno do poder. Uma rede de interesses que pode soar constrangedora para quem preferiu manter sua imagem pública dissociada do regime. ÉPOCA selecionou alguns desses afagos, como mostra a seguir.

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Golbery do Couto e Silva (Foto: José Luiz da Conceição/Agência O Globo)

“Eminente patrício”
Juscelino Kubitschek    
Golbery participou da conspiração que tentou impedir a posse de Juscelino Kubitschek na Presidência da República em 1955. Durante a ditadura, os direitos políticos de Juscelino foram cassados. Acusado de corrupção, JK também foi alvo de inquéritos militares. Em 1975, sentindo o ambiente entre os imortais francamente favorável a sua eleição, o ex-presidente decidiu concorrer a uma cadeira na Academia Brasileira de Letras. Nessa época, porém, a ABL negociava com o governo federal um empréstimo de 180 milhões de cruzeiros para erguer um prédio de 29 andares ao lado de sua sede, no centro do Rio.

Alguns meses antes do pleito, Golbery chamou a seu gabinete o presidente da instituição, Austregésilo de Athayde. “Golbery disse que já estava em sua mesa a papelada para liberar o empréstimo. E complementou que via com muita preocupação a repercussão negativa da entrada de Juscelino na Academia”, diz o editor José Mário Pereira, conhecedor dos bastidores da ABL. Athayde entendeu o recado e tentou demover JK da ideia, em vão. Juscelino estava de fato empenhado em conseguir o fardão e redobrou os esforços de campanha para contornar a resistência dos militares. Um mês antes da eleição, enviou ao general sua obra Por que construí Brasília, com uma amável mensagem destacando que a nova capital era “objeto do estudo patriótico e das atenções” do “eminente patrício”. Não houve efeito. Juscelino perdeu a vaga para o desconhecido escritor goiano Bernardo Élis. Mas o empréstimo vingou e o espigão pôde ser erguido, tornando-se a principal fonte de renda da ABL.

Juscelino Kubitschek (Foto: Antonio Nery/ Agência O Globo)

O poeta agradece
João Cabral de Melo Neto

Na década de 1950, o poeta e diplomata João Cabral de Melo Neto foi afastado do Itamaraty, acusado de pertencer ao Partido Comunista. Conseguiu o emprego de volta e manteve-se em silêncio no regime militar, ocasião em que recebeu uma ajuda providencial de Golbery. O editor José Olympio fazia a ponte entre o autor e o general, que conseguiu para João Cabral a promoção a embaixador. Em agradecimento, o diplomata fez uma cordial dedicatória no livro Museu de tudo, de 1975. “Ao general Golbery do Couto e Silva, com o apreço intelectual de João Cabral.” O livro acabaria subtraído de sua estante e vendido a um livreiro de São Paulo. A reportagem de ÉPOCA encontrou o exemplar nas mãos de um bibliófilo do Rio.

Golbery voltaria a ajudar o autor de Morte e vida severina. Em 1979, João Cabral queria deixar seu posto no Senegal e recorreu a José Olympio. Quem lhe respondeu foi o irmão do editor, Daniel Pereira: “O José tomou providência imediata: mandou ao seu padrinho general Golbery – homem que conseguiu a sua promoção a ministro de 1a classe – o próprio original de sua carta”. No mesmo ano, o poeta foi removido para o Equador.

João Cabral de Melo Neto (Foto: Orlando Brito/Agência O Globo)


Pedido ao padrinho
Rachel de Queiroz

Comunista na juventude, a escritora cearense Rachel de Queiroz apoiou o golpe de 1964. “Ela promovia reuniões com altos oficiais em seu apartamento, no Rio de Janeiro, com o objetivo de pensar o Brasil”, diz a pesquisadora Natália Guerellus, que prepara uma biografia da escritora. Numa demonstração de afeto a Golbery, seu padrinho de casamento, Rachel enviou a ele três livros com carinhosas dedicatórias: o romance Dôra, Doralina (1975), As menininhas e outras crônicas (1976) e O jogador de sinuca e mais historinhas (1980).

Nesse intervalo, aproveitou para mandar também um bilhete ao chefe da Casa Civil com um pedido de ajuda a sua amiga Regine Feigl, que pretendia erguer um prédio de 24 andares na valorizada Avenida Atlântica, no Rio de Janeiro. O terreno, pertencente à construtora de Feigl, havia sido desapropriado pelo presidente JK em favor da Sociedade Pestalozzi, voltada para o tratamento de crianças com deficiência. Em 1976, um decreto do governo federal desalojou a entidade. Faltava apenas a liberação dos militares, uma vez que se tratava de uma área estratégica, vizinha do Forte do Leme. Em março do ano seguinte, o general escreveu a Rachel dizendo que trabalhava por sua demanda. Cinco meses depois sairia a autorização, e no ano seguinte era lançada a pedra fundamental do edifício Regine Feigl, imponente prédio que hoje destoa na orla do Leme.

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Rachel de Queiróz (Foto: Paulo Moreira/ Agência O Globo)


Parceria improvável
Rubem Fonseca

O Instituto de Estudos e Pesquisas Sociais (Ipes) foi o centro ideológico do golpe de 1964. No Ipes, Golbery era o responsável pela área que coletava informações de atividades tidas como subversivas. Na entidade, tinha como colega o escritor Rubem Fonseca, secretário executivo, à frente das publicações. Depois que Golbery chegou ao poder, Fonseca diz ter se afastado desse universo, por não ser favorável “à ruptura da ordem constitucional através de revoluções ou golpes”.

Na biblioteca do general, há dois livros autografados por Fonseca: A coleira do cão e uma versão em francês de O caso Morel. Na primeira dedicatória, de 1966, o escritor fala da vontade de voltar a conversar sobre literatura com o militar. A outra mensagem data de 1979. Nela, Rubem diz que o general sabe que “a poesia é uma ciência tão exata quanto a geometria”. Trata-se de uma frase de Gustave Flaubert, citada também em Bufo & Spallanzani.

Rubem Fonseca (Foto: Reprodução Stefano Martini/ÉPOCA)







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