Vida

O mistério do sumiço de 78 cartas do escritor Mário de Andrade

O mistério do sumiço de 78 cartas do escritor Mário de Andrade

Peças do acervo de correspondências do intelectual, tombado como patrimônio histórico e artístico nacional, foram subtraídas da USP

MARCELO BORTOLOTI
11/01/2016 - 08h03 - Atualizado 11/01/2016 08h03

A coleção de cartas do escritor Mário de Andrade é um dos poucos arquivos de papel no país que foram tombados pelo Instituto do Patrimônio Histórico e Artístico Nacional (Iphan). A importância do conjunto justifica essa proteção. Mário se correspondeu com centenas de artistas e intelectuais. As cartas que recebeu, e guardou, ajudam a entender a história cultural do Brasil. Por esse motivo, pesquisadores do mundo inteiro recorrem ao Instituto de Estudos Brasileiros, na Universidade de São Paulo (USP), onde as cartas estão guardadas como um tesouro.

Talvez não. Em algum momento entre 2003 e 2010, sumiram 78 cartas do arquivo. Ninguém sabe o que aconteceu com elas. Diante do zelo com que a universidade sempre cuidou do acervo, um fato assim deveria ser apurado com o maior rigor para tentar descobrir os responsáveis. Não foi. A USP esqueceu o assunto sem caçar os piratas. Sumiram cartas que Mário de Andrade havia recebido e guardado. Entre elas, algumas escritas por Manuel Bandeira, Fernando Sabino, Di Cavalcanti, Ronald de Carvalho, Menotti Del Picchia e Victor Brecheret.

Quando um bem tombado desaparece ou sofre algum dano, o fato precisa ser comunicado imediatamente ao Iphan, que toma as providências necessárias – aciona a Polícia Federal e inclui os itens no Cadastro de Bens Procurados, para que sejam recuperados se alguém tentar vendê-los. Foi o que aconteceu em 2012, quando sumiram 17 fotos desse mesmo arquivo. No caso das cartas, no entanto, o Iphan foi notificado e por algum motivo não tomou providência. A USP também fez um registro de furto na Polícia Civil, que não levou adiante qualquer investigação.

O escritor Mario de Andrade. O sumiço das cartas de sua coleção abre um buraco na história da cultura do Brasil (Foto: Fundo Mario de Andrade/Arquivo Biblioteca/Coleção de Artes Visuais  do Instituto de estudos Brasileiros da USP e reprodução)

A USP abriu uma sindicância interna. Uma cópia dela foi obtida por ÉPOCA por meio da Lei de Acesso à Informação. A universidade também identificou e corrigiu algumas falhas de segurança. Mas sobre o culpado e o destino das cartas até hoje não há sequer uma pista. Apenas a chefe do arquivo na ocasião do sumiço, Maria Izilda Leitão, foi substituída. O ocorrido nunca veio a público. E o assunto virou um segredo incômodo entre os pesquisadores da USP, sobre o qual somente se sussurra.

Mário de Andrade morreu em 1945. Pouco mais de 20 anos depois, sua família vendeu o acervo para a universidade. Desde então, o conjunto tem uma zeladora implacável, que é a professora Telê Ancona Lopez, de 77 anos. Ela dedicou a vida a esse arquivo. Telê ajudou a transportar o acervo para a USP, foi responsável por sua catalogação, inventou um tipo de caixa especial para acondicionar as cartas, coordenou pesquisadores que se debruçaram sobre o conjunto e é considerada uma das maiores autoridades do país em Mário de Andrade.

Em 1995, Telê e sua equipe começaram a elaborar um catálogo descrevendo o conteúdo do acervo. O trabalho só terminou em 2003, quando foi divulgada a lista com todas as cartas recebidas por Mário, seus remetentes e uma descrição breve do assunto. Dois anos depois, o material começou a ser digitalizado, e as lacunas foram aparecendo. Faltavam cartas que já haviam sido descritas no inventário, e por algum motivo não estavam dentro das caixas.

O problema foi comunicado à professora Telê. Na época, o acervo ficava numa sala com estantes onde só os funcionários do arquivo e os integrantes da equipe de pesquisa coordenada por ela tinham acesso. A direção do Instituto de Estudos Brasileiros não ficou sabendo do sumiço. Em 2008, uma pesquisadora da Unicamp pediu para consultar as cartas que o escritor Ronald de Carvalho enviou a Mário de Andrade. Nove delas haviam desaparecido.

Diante dessa lacuna, os funcionários do arquivo expressaram sua preocupação à professora Telê. “A professora pediu para que ficássemos calmas, pois assim que possível a equipe Mário de Andrade realizaria um mutirão em conjunto com os funcionários do arquivo para localizar as cartas não encontradas”, diz o relatório da sindicância. Nenhuma providência foi tomada. Em 2009, a chefia do arquivo designou por conta própria uma estagiária para fazer a varredura em todas as caixas da coleção e verificar se as cartas estavam fora de lugar. Não estavam. No total, identificou-se o sumiço de 78 missivas, mas o assunto foi tratado em segredo.

No ano seguinte, diante da pressão dos pesquisadores para ver as cartas de Ronald de Carvalho, o caso foi comunicado à direção do IEB. A diretora do IEB na ocasião, Ana Lúcia Lanna, mandou fazer nova varredura no arquivo, que confirmou o sumiço. Ela fez um registro de ocorrência na 51a DP e instaurou uma sindicância interna. Tudo foi tratado com a maior discrição possível. A polícia não investigou o caso. “Quando da notícia do fato, a representante legal da USP deixou de ressaltar a importância das referidas cartas, não esclarecendo que se tratava de acervo pertencente ao escritor Mário de Andrade e ao patrimônio histórico da USP, não havendo maiores detalhes do ocorrido, filmagens ou demais provas dos fatos criminosos”, informou a Polícia Civil a ÉPOCA.

A comissão de sindicância interrogou vários funcionários e pesquisadores e encerrou os trabalhos dois meses depois, sem identificar nenhum culpado. Ao final, recomendou que o sumiço fosse comunicado ao Iphan, para providências cabíveis. O escritório do Iphan em São Paulo recebeu a notificação ainda em 2010, mas não tomou providências nem informou o setor responsável em Brasília. A assessoria de comunicação do instituto não soube explicar por que nenhuma medida foi tomada.

A sindicância identificou que nenhum pesquisador externo à USP consultou essas cartas, apenas os que pertenciam à equipe da professora Telê. Na época, os pesquisadores tinham acesso direto às estantes e podiam levar cartas para sua sala de trabalho. Estagiários do arquivo também tinham livre circulação no local. Esse procedimento mudou. Hoje ninguém tem acesso direto às estantes, apenas um grupo controlado de funcionários do arquivo. Os pesquisadores só acessam as cartas numa sala de consulta.

Algumas das cartas que sumiram já haviam sido publicadas. Outras eram inéditas. Ou seja, ninguém leu a não ser a equipe que fez o catálogo. Entre as desaparecidas estão cinco de Manuel Bandeira, escritas em 1932, que falavam sobre planos de publicação de livros, socialismo, tuberculose e sobre a Revolução de 1932. Elas foram publicadas na correspondência de Mário e Bandeira, organizada pelo professor Marcos de Moraes, da equipe de Telê, que teve acesso aos originais antes do sumiço. Também desapareceram seis cartas escritas por Fernando Sabino em 1942, que estão no livro Cartas a um jovem escritor e suas respostas, organizado pelo próprio Sabino, que também acessou os originais.

>> Os poemas secretos de Manuel Bandeira

Entre as cartas que nenhum pesquisador externo leu, estão três de Di Cavalcanti, escritas de 1920 a 1922. Segundo sua descrição, falavam de crítica de arte, dificuldades financeiras e da venda de um quadro para Mário de Andrade. Também inéditas, as nove cartas de
Ronald de Carvalho são de um período importantíssimo, que compreende os anos de 1922 e 1923. Ronald foi um dos participantes da Semana de Arte de 1922 e, nas cartas, segundo a descrição, falava de aspectos relacionados ao movimento. Outro desfalque importante foram 13 missivas inéditas de Menotti Del Picchia, incluindo um bilhete assinado em conjunto com Oswald de Andrade. As cartas vão de 1921 a 1940 e compreendem um período pouco estudado na biografia de Mário de Andrade, que foi sua conturbada passagem pelo Rio de Janeiro. Uma das cartas tem a anotação “confidencial”, escrita por Mário.

Arte Mario de Andrade (Foto: Folhapress (2),Estadão Conteudo (2), Arquivo/Agência O Globo e reprodução)Foto: Folhapress (2),Estadão Conteudo (2), Arquivo/Agência O Globo e reprodução)

A professora Telê não quis conversar com a reportagem. Pesa sobre ela a fama de superprotetora em relação ao arquivo e é conhecido seu esforço em tentar preservar aspectos da intimidade de Mário, sobretudo assuntos relacionados a sua homossexualidade. Alguns pesquisadores sugerem que as cartas poderiam ter sido guardadas por ela mesma, para proteger o escritor. A tese não faz sentido, porque todos os documentos estão descritos, alguns deles publicados, e tratam de assuntos diversos, com interlocutores bastante variados. A não ser a carta com a anotação de confidencialidade, que poderia ter algum tema comprometedor, muitos assuntos são prosaicos e vão desde pedido de emprego a discussões literárias.

>> A correspondência secreta de Mário de Andrade

Algumas das missivas desaparecidas poderiam ter valor comercial. Uma carta assinada por Manuel Bandeira pode valer até R$ 10 mil num leilão. Mas nesse caso, por pertencer sabidamente a uma instituição pública, seria impossível vender no mercado oficial. Seu destino, se tiverem sido roubadas, seria as feiras de antiguidade onde poderiam ser comercializadas por um valor irrisório. A variedade dos remetentes, que inclui nomes conhecidos como Manuel Bandeira e Di Cavalcanti e outros completamente obscuros como o prefeito de Fonte Boa, no Amazonas, José Amaro Coelho Cintra, também não indica que foi um roubo visando ao comércio.

As cartas que sumiram estavam em caixas separadas, em estantes diferentes. Não há uma lógica no conjunto, exceto pelo fato de que algumas das cartas subtraídas estavam na sequência, como se alguém houvesse retirado um bolo delas de dentro de uma caixa. Na de número 25, que foi a caixa mais desfalcada, desapareceram 37 cartas que estavam na sequência e eram de remetentes variados. “Não conseguimos identificar o que realmente houve, se foi um furto, um extravio, ou qual foi a causa”, diz o procurador-chefe da USP, Hamilton de Castro Teixeira, que presidiu a sindicância. Nos últimos seis anos, a equipe da USP continuou vasculhando as caixas, com a esperança de que um dia poderia encontrar as cartas desaparecidas. Nada. O mistério não foi desvendado. Vindo a público, o caso pode ser debatido de maneira mais aberta e apurado com rigor.








especiais