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Acusado de falsificar documento, autor transforma sua história em livro e peça teatral

Acusado de falsificar documento, autor transforma sua história em livro e peça teatral

Um folhetim digital levou o escritor paulistano Ricardo Lísias a ser investigado pela Justiça. Agora, ele converte esse enredo kafkiano em ficção

RUAN DE SOUSA GABRIEL
13/05/2016 - 08h00 - Atualizado 13/05/2016 15h43

Alguém certamente havia caluniado Ricardo Lísias, pois uma manhã ele foi intimado a depor sem ter feito mal algum. “Eu estava lá na minha casa, quando recebi uma cartinha que dizia que eu deveria comparecer à sede da Polícia Federal, porque havia um procedimento criminal contra mim”, diz o escritor paulistano. Lísias acionou o advogado Pedro Luiz Bueno de Andrade a fim de descobrir o que a Justiça tinha contra ele. “Você arrumou briga com algum delegado?”, perguntou o advogado depois de se informar sobre o caso. “Não, eu não conheço delegado nenhum”, respondeu Lísias. “Mas você não conhece um delegado chamado Paulo Tobias?”, retrucou o advogado. “Quando ele me perguntou isso, eu precisei me sentar”, diz o escritor. Sim, ele conhecia o tal delegado. Paulo Tobias é um personagem de ficção criado por Lísias e protagonista de um folhetim em cinco volumes digitais publicado em 2014.

O escritor Ricardo Lísias (Foto: Divulgação)
Ricardo Lísias (Foto: Divulgação)

No folhetim Delegado Tobias, editado pela e-galáxia, Lísias lançou mão de um artifício que marca sua obra, a autoficção. A técnica borra as fronteiras entre ficção e realidade. Personagens reais, como renomados professores universitários e um escritor chamado Ricardo Lísias, dividem as páginas com personagens fictícios, como os membros da família Tobias. Nos e-books, o delegado Tobias investiga o assassinato de Ricardo Lísias (o de ficção) e acusa o autor de se apropriar do trabalho policial para produzir literatura. O juiz Lucas Valverde do Amaral Rocha e Silva, que só existe no folhetim, emitiu uma liminar que determinava a proibição do livro e do uso do termo “autoficção”. Segundo o juiz fictício, o leitor médio não teria “discernimento suficiente para discernir se está diante de uma obra de ficção ou um mero relato”.

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A realidade provou que o juiz fictício tinha razão. Pelo menos três pessoas diferentes recortaram a decisão judicial do e-book e enviaram à Justiça Federal, por meio do Facebook, afirmando que se tratava de documento falso. A denúncia chegou ao Ministério Público Federal (MPF), que avaliou que havia indícios de crime e determinou a abertura de inquérito. O escritor passou a ser investigado por falsificação e uso de documento público falso, crimes previstos nos artigos 297 e 304 do Código Penal. Lísias prestou depoimento no dia 20 de outubro de 2015. Levou consigo um advogado e os cinco volumes de Delegado Tobias impressos em papel para provar que não cabia à Justiça brasileira intervir em processos judiciais que correm em varas fictícias. “É uma coisa extraordinária!”, diz Lísias, que cai na gargalhada várias vezes enquanto conta essa história. “Eles fizeram toda uma investigação e não perceberam que era tudo ficção. Bastava escrever delegado Tobias no Google!”.

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Toda essa confusão levou Lísias a escrever seu próprio inquérito – um livro no qual o escritor Ricardo Lísias (o de ficção) procura saber quem o denunciou. Inquérito policial: família Tobias (Lote 42, 128 páginas, R$ 49,90) imita a estética dos inquéritos de verdade. É uma pasta azul, grampeada, cheia de documentos e papéis de várias cores e tamanhos. Há etiquetas, portarias, notícias, despachos judiciais, a árvore genealógica da família Tobias, cartas, e-mails e transcrições de conversas de WhatsApp. Lísias (o de ficção) descobre que quem o denunciou foram Cecília Arbolave, João Cezar Varella e Thiago Blumenthal, editores da Lote 42. Numa troca de mensagens, os três editores decidem denunciar o escritor para ajudá-lo a superar um bloqueio criativo e entregar logo o livro que devia. O trauma de lidar com as burocracias judiciais forneceria a Lísias a inspiração necessária para compor uma história que unisse os três sobrinhos do delegado Tobias. Inquérito policial: família Tobias foi lançado no último sábado (7) numa festa na rua Barão de Tatuí, reduto hipster no centro de São Paulo. “Apareceram vários delegados da Polícia Federal interessados no caso”, diz Lísias.

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A partir desta sexta-feira (13), Lísias será personagem de si mesmo também no teatro. Até domingo (15), ele apresenta a peça Vou, com meu advogado, depor sobre o delegado Tobias, dirigida por Alexandre Dal Farra e Janaína Leite, no Sesc Ipiranga, em São Paulo. A peça, escrita pelo próprio Lísias, transforma a experiência de dar explicações à Justiça sobre um texto de ficção em teatro do absurdo. Lísias dividirá o palco com Eduardo Climachauska, no papel de advogado, e Clayton Mariano, como o delegado que tomou o depoimento.

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No dia 6 de abril, o MPF pediu o arquivamento do inquérito que investiga os documentos supostamente falsos de Delegado Tobias. “Não se deve confundir falsificação com ficção”, afirmou, no pedido de arquivamento, o procurador Márcio Schusterschitz da Silva Araújo. “Também não se pode exigir que o meio escrito, o livro, não possa extrapolar seu papel com o uso de recursos diversos, sejam quais forem”. Lísias (o de verdade) não quer saber quem o denunciou. “Preferi dar uma resposta ficcional, que me pareceu melhor”, diz. Inquérito policial também pode ser lido como uma crítica à burocracia judicial, que dedicou muitas horas de trabalho e metros de papel a uma questão fictícia. “As instituições não podem chegar a um ponto em que não percebem o que é ficção”, afirma.

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Lísias tem um romance no prelo, Cidade brava: mar Brasil, a ser publicado no próximo semestre. Não é autoficção, não é em primeira pessoa e não tem um personagem chamado Ricardo Lísias. O protagonista é um artista plástico e a história se passa no Rio de Janeiro. Mas Lísias não pensa em abandonar de vez e autoficção e já planeja novos volumes sobre a família Tobias. “Se a autoficção me causa tantos transtornos, é porque diz alguma coisa”, afirma. Houve quem achasse que toda essa história de inquérito fosse mais uma invenção de Lísias, um escritor hábil em transformar a realidade em ficção. Desta vez, a realidade deu o troco. “Quando eu li o inquérito, achei muito engraçado”, diz Lísias. “Parecia um negócio que eu escreveria. Até fiz piada dizendo que ia processá-los por plágio”.








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