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Há 50 anos

'Apesar de você': O hino de Chico Buarque que a ditadura censurou após levar drible do poeta

Chico Buarque no dia em que retornou ao Brasil após exílio na Itália, em 1970

"Apesar de você" foi um gol com direito a drible no goleiro. Lançada no finzinho de 1970, após ser aprovada pela censura do governo militar, o samba de Chico Buarque vinha sendo tocado nas rádios e cantado por artistas como Clara Nunes e Elizeth Cardoso. Em três meses, foram mais de cem mil compactos vendidos. Até que, em fevereiro de 1971, o jornalista Sebastião Nery, da "Tribuna da imprensa", escreveu que seu filho e os colegas ouviam a música como se fosse o Hino Nacional. Sem querer, ele tinha dado a deixa pra tudo começar a desandar.

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Muita gente, como a própria Clara Nunes, achava que a música tratava de algum relacionamento infeliz do poeta. Certamente, foi o que pensou o censor que autorizou a letra. Mas não levou muito tempo até a sociedade mastigar a canção, uma crítica velada ao regime militar. Não faltaram indiretas de colunistas sociais e locutores de rádio. No dia 9 de janeiro de 1971, por exemplo, uma nota solta na coluna de Nina Chavs no caderno "Ela", do GLOBO, dizia "A última composição de Chico Buarque, 'Apesar de você', tem mensagem, tem mensagem".

O compacto original com 'Apesar de você' e 'Desalento', de 1970

Sebastião Nery queria elogiar o samba quando escreveu a nota na "Tribuna". Mas deu ruim, e o jornalista foi chamado para depor na delegacia. A partir daí, surgiram rumores de que a repressão vetaria o samba, lançado num compacto junto com "Desalento". No dia 12 de abril, o colunista Carlos Swann, do GLOBO, publicou: "Ninguém sabe o porquê da proibição de "Apesar de você" no show de Elizeth Cardoso no Canecão. A melodia deveria encerrar o espetáculo, sendo, entretanto, interditada". Em 30 de abril, o jornal dizia: "Chico Buarque de Holanda, que chegou ao Recife acompanhado do MPB-4, para apresentação no Geraldão, nada sabe sobre a censura de 'Apesar de Você', que continua entre as mais tocadas do país".

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Uma semana depois, no dia 7 de maio, há exatos 50 anos, os veículos de comunicação receberam uma nota oficial informando sobre a proibição da faixa. "Para mim, é surpresa", comentou o próprio compositor. "Antes de gravar a música, mandei a letra para a Censura Federal de Brasília, que a liberou. Depois, tive alguns probleminhas que foram completamente resolvidos. Agora, acho bastante estranha esta atitude, se realmente ocorreu, pois a música está superconhecida e há cinco meses em cartaz".

Chico Buarque durante show no Canecão em setembro de 1971

Para não restar dúvida, um grupo de militares invadiu a fábrica da gravadora Phillips e destruiu todas as cópias ainda no estoque. Da mesma forma, os exemplares do compacto a venda nas lojas foram recolhidos e destruídos. Ainda que já fosse um sucesso, a canção foi totalmente proscrita e, mesmo nos nossos arquivos, não há sequer uma menção de seu nome até 1977, quando as regras da ditadura estavam sendo flexibilizadas, e o país caminhava para o retorno à democracia de forma "lenta, gradual e segura", conforme os planos dos militares.

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Chico Buarque já estava na mira da repressão havia anos, devido a obras consideradas subversivas como a peça "Roda viva", que estreara no Rio em janeiro de 1968. No dia 26 de junho daquele ano, o artista teve a sua presença na Passeata dos Cem Mil alardeada pela imprensa. Semanas mais tarde, quando "Roda viva" estreou no Teatro Galpão, em São Paulo, no dia 19 de julho, o espaço foi invadido por cerca de 20 elementos do grupo "Comando de Caça aos Comunistas (CCC)", que, armados com cassetetes e socos-inglêses, agrediram o elenco e quebraram todo o cenário.

Chico Buarque em meio a fileira de artistas na Passeata dos Cem Mil, em 1968

Em 13 de dezembro de 1968, o governo decretou o Ato Institucional 5 (AI-5), que na prática autorizou a prisão arbitrária, a tortura e a morte de opositores políticos. Caetano Veloso e Gilberto Gil foram encarcerados. No dia 4 de janeiro de 1969, Chico partiu em viagem previamente marcada à Itália e, temendo ser preso na volta, decidiu ficar por lá mesmo.

De início, achou que poderia se manter na Europa fazendo shows em Florença, Mônaco, Saint Remo.... Mas a realidade era outra. Não havia esse mercado para a música brasileira no Velho mundo. Os convites para shows se tornaram raros. Sem condições de recusar ofertas, ele aceitou sair em turnê pela Europa, acompanhado de Toquinho, abrindo shows para a diva do jazz Josephine Baker.

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Chico viveu 14 meses na Itália. Sua primeira filha com a atriz Marieta Severo, Silvia Buarque de Holanda, nasceu no país, e o casal estava "grávido" de novo quando, sem trabalho e sem grana, o compositor e sua companheira decidiram que não dava mais pra ficar na Europa. O próprio artista disse, em entrevista ao GLOBO publicada no dia 15 de julho de 1979, que "depois de dois meses eu já não tinha o que fazer por lá". Mas ele não podia retornar na surdina. Seria um prato cheio para a repressão prendê-lo sem ninguém saber, como foi com Caetano.

Chico Buarque com Marieta Severo e a filha, Silvia, na pista de pouso no Galeão

- Eles estavam muito duros na Itália, foi um período complicado nesse sentido. No Brasil, ele teria convites para shows e tinha direitos autorais a receber - afirma a jornalista Regina Zappa, biógrafa do cantor, autora de diversos livros sobre a carreira do artista carioca. - Quando decidiram que era realmente preciso voltar, Vinicius de Moraes o aconselhou a "chegar fazendo barulho". Mesmo assim, ele veio para o Brasil sabendo que não havia garantias de que ele não seria preso ao chegar.

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Chico e os amigos espalharam para todo mundo a data e o horário da chegada do voo, às 8h do dia 20 de março de 1970. Quando o avião baixou no Galeão, havia uma claque de famosos, como Paulinho da Viola, Nelson Motta e Betty Faria, além de um grupo de repórteres de diferentes jornais. "Volta de Chico Buarque deu festa para a noite inteira", dizia o título da reportagem do GLOBO que descreve a recepção armada no então badalado restaurante Antonio's, no Leblon, na Zona Sul do Rio.

Chico Buarque com Vinicius de Moraes e amigos no restaurante Antonio's, em 1970

"O meu whisky é sem gelo, Manolo, já esqueceu de mim?", disse ele ao conhecido proprietário do restaurante, que brincou dizendo que até deixara a barba crescer, como promessa, e só a rasparia quando o cantor retornasse ao Brasil.

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Só que o Brasil daquela época não era um país muito de festa. Estávamos nos "anos de chumbo", o período mais duro da repressão militar, cujos agentes usavam as armas garantidas no AI-5 para sufocar a repressão. Foi a época dos sequestros de embaixadores, dos assassinatos em porões da ditadura. A maior parte dos desaparecidos políticos foi presa entre 1969 e 1974. Além disso, o nacionalismo extremista alimentado pela propaganda oficial estava entranhado, o que ficava claro em adesivos de carros onde se lia "Brasil, ame-o ou deixe-o".

Reunião do Conselho de Segurança após edição do AI-5, em dezembro de 1968

Foi nesse clima sombrio que Chico compôs "Apesar de você". Para pesquisadores da obra do autor, o "você" do verso-título pode ser tanto a própria ditadura quanto o general Emílio Médici, então presidente do país. O autor escreveu a letra e submeteu à censura achando que poderia muito bem não ser aprovada, mas o censor encarregado de avaliar a canção comeu mosca e não viu a mensagem escondida em versos como "Você que inventou a tristeza/Ora, tenha a fineza/De desinventar/Você vai pagar é dobrado/Cada lágrima rolada/Nesse meu penar".

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Imagine o que aconteceu quando os militares se deram conta de que aquele petardo passara por debaixo das suas pernas? O militar responsável foi punido, mas não tanto quanto o próprio Chico, que passou a ser ainda mais tolhido. Ele foi chamado a depor e teve a frieza de dizer, diante da polícia política, que o "você" da letra era uma "mulher mandona, autoritária". Mas não teve jeito, o homem ficou marcado.

"De cada três músicas que faço duas são censuradas. De tanto ser censurado, está ocorrendo comigo um processo inquietante. Eu mesmo estou começando a me autocensurar. E isso é péssimo", disse o poeta antes de um show no Canecão, segundo a edição do GLOBO de 15 de setembro de 1971.

A letra de 'Cálice' com anotações e o carimbo de 'vetado' da ditadura

A partir daí, foram vários trabalhos dele censurados, como a música "Cálice", com Gilberto Gil, e a peça "Calabar: o elogio da traição", escrita com Ruy Guerra e proibida no dia da estreia, 20 de outubro de 1974, no Rio, quando o espetáculo, produzido por Fernando Torres, já estava todo pronto. Uma fortuna jogada no lixo. No mesmo ano, Chico lançou o sugestivo "Sinal fechado", um disco inteiro com músicas de outros autores, à exceção da faixa "Acorda, amor", assinada por Julinho da Adelaide, pseudônimo que inventara para despistar a repressão.

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As coisas só começaram a melhorar nesse aspecto em 1977, quando até mesmo "Apesar de você" voltou a tocar em algumas rádios. No ano seguinte, a canção figurava como a última faixa do lado B do álbum "Chico Buarque". Porém, em uma entrevista publicada por Nelson Motta em sua coluna no GLOBO, o compositor disse que não ficou muito feliz ao incluir a música. Ele disse que esta e outras canções pertenciam "ao passado" e que chegara a pensar em excluir a faixa daquele LP.

Chico Buarque com a filha Silvinha na sua casa em setembro de 1971

"'Apesar de você' é um desabafo que tem um tom alegre, mas sem deixar de ter um tom de revolta. E revolta não é o tom das músicas que estou fazendo agora. Cheguei a pensar se deveria excluir, mas achei que poderia ser uma atitude pirracenta e até infantil. A gente mais nova nunca ouviu a música, que já tem oito anos e ficou marcada por ter sido lançada e proibida. Sabendo que as pessoas gostariam de ouvi-la, não me achei no direito de não gravá-la".

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- Interessante pensar que "Apesar de você" é um samba que começa com um coro, como se fizesse referência a uma vontade popular, e depois entra a voz do poeta cantor, envolvido num momento duro do presente e sonhando com um futuro - analisa o pesquisador Roniere Menezes, professor de Literatura da Cefet-MG e pesquisador da obra de Chico. - Alguns especialistas criticam a ideia utópica da letra, questionando a falta de uma ação para se chegar à mudança. Outros acham que a utopia na letra deve ser vista, por si só, como uma tentativa de reconfigurar o presente. "Amanhã va ser outro dia" é uma denuncia do presente.

Chico Buarque em imagem de 1969, ano em que se exilou na Itália

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