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Crime em São Conrado

Zuzu Angel: A 'mãe coragem' que enfrentou a ditadura militar e foi morta num atentado

A estilista Zuzu Angel em imagem de maio de 1970

Eram 2h15 da madrugada quando Zuzu Angel sentou-se ao voltante de seu Volkswagen Karmann-Ghia, após uma festa na casa da amiga Lucinha de Andrade Vieira, no Leblon, na Zona Sul do Rio. Com a cidade adormecida, e as ruas vazias nas primeiras horas daquela quarta-feira, 14 de abril de 1976, ela deveria chegar logo à Barra da Tijuca, na Zona Oeste, onde morava. Porém, ao sair do Túnel Dois Irmãos, em São Conrado, a mineira de 54 anos perdeu o controle do automóvel, que bateu na mureta do viaduto sobre a Avenida Niemeyer e decolou de uma altura cinco metros, até parar de rodas para cima na Rua Projetada, perto da Favela da Rocinha.

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Zuzu morreu presa às ferragens. Os policiais que chegaram à cena disseram que se tratava de acidente. Especularam que a motorista teria sofrido de um mau súbito ou que estivesse bêbada. Talvez o carro estivesse com problemas. Mas quem conversou com a estilista na festa disse que ela estava bem disposta, e o exame do Instituto Médico Legal (IML), divulgado em 22 de abril daquele ano, negou a presença de álcool no sangue. Além disso, sua secretária contou que o Karmann-Ghia passara por um conserto na semana anterior. Na versão oficial do caso, a perícia concluiu que Zuzu sofrera um acidente após dormir na direção. A verdade, porém, só seria revelada décadas depois. A desginer fora vítima de um atentado.

O carro de Zuzu Angel destruído após colisão, em 14 de abril de 1976

O funeral reuniu cerca de 200 pessoas no Cemitério São João Batista, em Botafogo, no dia seguinte. Entre amigos e parentes, estavam as filhas, Hildegard e Ana Cristina, além de artistas, políticos e profissionais da moda, todos trocando olhares não só de consternação, mas também de revolta. Ninguém ali confiava na narrativa oficial sobre a morte de Zuzu. Chico Buarque, em especial, tinha um motivo concreto para crer que a estilista fora assassinada. Uma semana antes de morrer, ela tinha entregado ao amigo compositor uma carta: "Se eu aparecer morta, por acidente ou outro meio, terá sido obra dos assassinos do meu amado filho", dizia.

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Uma das maiores estilistas do Brasil, nascida na pequena Curvelo, em Minas Gerais, Zuleika Angel Jones vinha causando problemas ao governo militar desde 1971, quando seu filho foi assassinado por agentes da repressão. Stuart Angel integrava o MR-8, grupo da luta armada contra a ditadura. Tinha 25 anos quando foi preso por agentes do Centro de Informações da Aeronáutica (Cisa) e levado, em segredo, à Base Aérea do Galeão, onde foi torturado e morto. A partir de então, Zuzu acordou todos os dias determinada a expor os algozes do filho e recuperar o corpo do rapaz.

Funeral de Zuzu Angel, no cemitério São João Batista, em 15 de abril de 1976

Levando a revolta para seu trabalho nas passarelas, a designer criou uma coleção de roupas estampadas com manchas vermelhas, pássaros engaiolados e motivos bélicos. Um anjo, ferido e amordaçado, tornou-se um símbolo à memória de Stuart. Em setembro de 1971, a designer promoveu um desfile de protesto no consulado brasileiro em Nova York, supreendendo os diplomatas locais, que não sabiam da temática crítica do evento. Sua mobilização conseguiu espaço na imprensa internacional, enfurecendo os generais da época.

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No Dia das Mães de 1973, Zuzu foi ao apartamento do general Ernesto Geisel, no Leblon. Ao então presidente da Petrobrás, que se vendia como um militar benevolente, ela pediu ajuda para encontrar os restos mortais de Stuart. Dois anos depois, quando o gaúcho de Bento Gonçalves já havia sido feito presidente da ditadura, a estilista mandou uma carta para ele, relembrando a visita anterior, descrevendo sua duradoura agonia e perguntando: "Que teria sido feito do corpo do meu amado filho?".

Zuzu Angel com seus três filhos, Ana Cristina, Hildegard e Stuart

Mesmo temendo retaliações, a designer continuava sua luta. Escreveu uma carta para o senador democrata Edward Kennedy, que denuciou o desaparecimento de Stuart ao Congresso americano. Em fevereiro de 1976, dois meses antes de morrer, durante uma visita do então secretário de Estado dos EUA, Henry Kissinger, Zuzu furou a segurança dos agentes do governo do Tio Sam e chegou até o andar onde o estrangeiro estava hospedado, no Hotel Sheraton, no Leblon. Ao encontrar Kissinger deixando a suíte, entregou a ele um dossiê sobre a morte de seu filho.

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Naquele ano, o presidente Ernesto Geisel já havia começado as conversas para uma abertura "lenta, gradual e segura". Doze anos haviam se passado do golpe de 1964. Entretanto, se, por um lado, a população tinha motivos para acreditar numa volta da democracia e num clima de flexibilização, por outro, essa possibilidade acentuou um conflito dentro do próprio regime. De acordo com o historiador Lucas Pedretti, que foi pesquisador da Comissão Estadual da Verdade do Rio, havia grupos entre os militares que não concordavam com uma distensão política.

- Mesmo em meio a um processo de abertura bastante limitado e totalmente controlado pelos militares, havia um setor que defendia a necessidade de radicalização do regime. Estes agentes da repressão acreditavam que o comunismo havia sido derrotado na luta armada, mas estava adotando estratégias de disseminação cultural, infiltrando-se em organizações civis e partidos - explica o pesquisador. - Estamos falando de militares que chamavam o próprio Geisel de comunista.

Zuzu Angel com a atriz Kim Novak, em 1971

No dia 14 de abril de 1976, Zuzu Angel chegou a sua loja na Rua Almirante Pereira Guimarães, no Leblon, por volta das 11h. Às 14h30, como era de costume, foi almoçar na casa das irmãs, Leopoldina e Virgínia, no Jardim Botânico, e, à noite, participou de uma gravação para o "Jornal Hoje", da TV Globo, em sua loja, mostrando peças de uma nova coleção. Dali, foi para o jantar na casa de Lucinha, onde dançou e se divertiu com amigos. Saiu de lá de madrugada, acompanhada por Sérgio Costa e Silva, que a levou até sua loja, onde a designer pegou seu Karmann-Ghia azul claro.

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Na versão oficial sobre a morte da estilista naquela época, ela adormeceu ao volante, permitindo que o carro batesse na mureta ao lado esquerdo da via. Então, segundo a perícia no local, o automóvel atravessou a pista sem qualquer reação da motorista (não havia marcas de freios) e se chocou com a mureta na margem direita, decolando do viaduto e caindo sobre a Rua Projetada, abaixo. No laudo cadavérico, consta que Zuzu morreu de traumatismo craniano e hemorragia subdural.

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Pessoas próximas à designer jamais acreditaram em nada disso, mas os detalhes do episódio só vieram a público em 1998, quando o advogado Marcos Pires declarou ter visto o carro da vítima sendo abalroado por outro automóvel na saída do Túnel Dois Irmãos, causando a colisão. Em 1976, ele morava no Edifício Tiberius, à direita da pista. Naquela madrugada, o então estudante de Direito conversava com amigos em sua casa quando viu a cena pela janela do apartamento. Eles desceram para tentar chegar perto do Karmann-Ghia, mas foram impedidos por policiais. Tinham clareza de que fora um atentado, mas não se manifestaram por medo da repressão.

Imagem na qual ex-delegado do Dops reconheceu coronel Perdigão, encostado em poste

O depoimento reforçou os pedidos da família Angel para que o caso fosse revisto. A Comissão Especial de Mortos e Desaparecidos Políticos, do Ministério da Justiça, solicitou, então, uma nova perícia, cujos especialistas refutaram frontalmente a dinâmica descrita no laudo de 1976 sobre as circunstâncias da colisão. O laudo cadavérico também foi derrubado. Tudo, agora, indicava que a motorista realmente virara o volante numa reação de autodefesa. Então, em março de 1998 o Estado Brasileiro reconheceu que Zuzu foi vítima de atentado.

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Em 2014, durante um depoimento à Comissão Nacional da Verdade (CNV), Claudio Antônio Guerra, ex-delegado do DOPS do Espírito Santo, confirmou o envolvimento direto de agentes da repressão na morte da designer. Ele apontou o coronel Freddie Perdigão Pereira, morto em 1998, como responsável pelo crime. Agente do DOI-Codi de São Paulo, que atuou na Casa da Morte de Petrópolis, Perdigão também coordenou, em 1981, o atentado frustrado no Riocentro, na Zona Oeste do Rio.

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Guerra identificou Perdigão numa foto do acidente produzida pelo GLOBO no dia 14 de abril de 1976. Na imagem, tomada pouco após a morte da estilista, o militar aparece encostado num poste, de camisa clara. "Éramos confidentes, frequentávamos a casa um do outro. Um dia ele me disse que havia planejado simular o acidente dela e estava preocupado pois achava que havia sido fotografado na cena do crime pela perícia", disse o ex-delegado, que admitiu ter incinerado 12 corpos de militantes e ter assassinado um tenente como "queima de arquivo".

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Depois de 43 anos, em setembro de 2019, a jornalista Hildegard Angel conseguiu certidões oficiais de óbito do irmão, Stuart, e da mãe, Zuzu. A procuradora responsável por emitir a declaração com as condições de morte, Eugênia Gonzaga, havia sido, um mês antes, afastada da presidência da Comissão Especial sobre Mortos e Desaparecidos Políticos em agosto deste ano, por intervenção do presidente Jair Bolsonaro. Nos documentos oficiais, agora, consta como causa “morte não natural, violenta, causada pelo Estado brasileiro, no contexto da perseguição sistemática e generalizada a população identificada como opositora política ao regime ditatorial de 1964 a 1985”.

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