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Cultura

'Vou escrever para o Médici pedindo terra para os favelados', disse a autora Carolina de Jesus, em 1969

Carolina de Jesus na sua casa no distrito de Parelheiros, em 1969

Quase dez anos após o lançamento de "Quarto do despejo" (1960), Carolina Maria de Jesus, uma das primeiras autoras negras a publicar um livro no Brasil, levava uma vida humilde num terreno comprado com o dinheiro da venda de sua obra, no distrito de Parelheiros, em São Paulo. Segundo uma reportagem do GLOBO publicada no dia 11 de dezembro de 1969, Carolina passava o dia quase todo sozinha. Quando seus filhos, de 16, 19 e 21 anos, saíam para estudar ou trabalhar, ela pegava a enxada e ia cuidar das verduras, frutas e legumes produzidos na pequena roça dentro de sua propriedade. No tempo que sobrava, lia bastante, refletia sobre o mundo e preparava um livro.

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- Deus não favorece o indolente - disse a autora, que planejava escrever uma carta ao então presidente, o militar Emilio Garrastazu Médici. - A melhor reforma social se faria com a volta ao campo daqueles que nâo têm condições de viver na cidade. Vou escrever a ele pedindo que tire os favelados da cidade e lhes dê terras no campo.

Nesta quinta-feira, quando Carolina de Jesus completaria 105 anos, o gigante de buscas Google homenageou a autora com um doodle. O tributo celebra a importância da escritora. Depois de ser lançado, "Quarto do despejo" foi publicado em 22 países, incluindo França, Holanda, Estados Unidos, Japão e Rússia. A obra, na qual a autora relata o cotidiano na favela do Canindé, em São Paulo, levou Carolina a representar o Brasil em feiras culturais fora do país e a receber o título de Cidadã Paulistana. Depois, ela lançou mais três livros, "Casa de alvenaria", "Pedaços de fome" e "Provérbios". Entretanto, segundo aquela reportagem de 1969, "acabaram-se a fama e o pouco dinheiro dos livros (do exterior não recebeu quase nada em direitos autorais)".

Página do GLOBO de 11 de dezembro de 1969

Mesmo assim, Carolina se dizia feliz com a vida. Ela contou que, desde "Quarto do despejo", passou a ler e estudar muito e disse que suas reflexões sobre o mundo estariam no próximo livro, que, entretanto, não chegou a ser publicado antes de a autora morrer, em 1977, vítima de uma insuficiência respiratória, aos 62 anos. Desde então, seis obras póstumas de Carolina foram publicadas, muitas delas com escritos desse período no terreno em Parelheiros, que fica a 40km de São Paulo. A reportagem de 50 anos atrás reproduziu um pensamento registrado pela autora como rascunho:

"As abelhas nascem numa colmeia, trabalham, amam-se, respeitam-se e não se exterminam.

Por que os ilustres senhores Abraham Lincoln, John Kennedy e Martin Luther King não nasceram num apiário?". 

Carolina de Jesus autografando seu livro "Quarto do despejo", em 1960

Em uma reportagem de agosto de 1960, O GLOBO relatou o lançamento de "Quarto de despejo", editado a partir do diário de Carolina, que escrevia sobre seu cotidiano na favela do Canindé em cadernos encontrados no lixo. Ela foi "descoberta" por um jornalista chamado Audálio Dantas, que estava na comunidade fazendo uma reportagem quando ouviu a escritora gritando com dois marmanjos que implicavam com um garoto: "Deixa estar que eu boto vocês no meu livro", ao que Audálio perguntou: "Que livro?", e ela respondeu: "O livro em que estou escrevendo as coisas da favela". A partir dessas descrições sobre a pobreza ao redor de Carolina, foi editado "Quarto do despejo", até hoje um ícone da literatura nacional. 

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