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Tensão entre Rússia e Otan

Os 'exageros' de Biden na Ucrânia, na visão de Pequim

O debate no Ocidente (e periferia) sobre a possibilidade de uma invasão da Ucrânia tem girado em torno de uma pergunta: o que quer o presidente russo, Vladimir Putin? Na China, que acaba de reforçar sua parceria estratégica com a Rússia, a pergunta é outra: o que quer o presidente americano, Joe Biden? Exagerar o risco de guerra e promover a divisão do mundo em blocos como na época da Guerra Fria “não é um comportamento responsável”, disse o porta-voz da diplomacia chinesa, Wang Wenbin.

O presidente russo, Vladimir Putin, em encontro com o chinês, Xi Jinping em Pequim, na China, em fevereiro

A retirada de parte das tropas russas posicionadas perto da fronteira ucraniana e a declaração de Putin de que ainda há muito espaço para uma solução diplomática não bastaram para que Biden deixasse de lado a ideia de que uma guerra pode ocorrer a qualquer momento. Depois de soltar frases de puro alarmismo como “as coisas podem ficar doidas rapidamente” e “é uma guerra mundial quando russos e americanos começam a atirar uns nos outros”, o presidente baixou um pouco o tom. Mas segundo ele, “especialistas americanos” ainda consideram que a possibilidade de uma invasão russa é real.

A imprensa chinesa é menos diplomática que o governo ao revelar um pouco do que a elite política do país pensa sobre o que está por trás dos “exageros americanos”. Para o jornal estatal China Daily, um dos objetivos é estremecer as relações entre Rússia e a Europa, tornando inviável a ambição europeia de ter uma política externa independente dos EUA. É o que aconteceria com a entrada da Ucrânia na Otan (Organização do Tratado do Atlântico Norte), que a Rússia considera uma séria ameaça a sua segurança.

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Nesse caso, a tensão criada pelo desaparecimento da última zona de separação entre a aliança militar ocidental e a Rússia forçaria os europeus a abrir mão do gás natural russo. Isso consolidaria a submissão europeia em relação aos EUA, tanto no setor de energia como no de segurança, afirma a publicação. O jornal ironiza a precisão dos alertas sobre uma invasão russa esta semana vazadas para a imprensa dos EUA, afirmando que os generais americanos não tiveram a mesma “clarividência” para prever no ano passado a rápida queda do governo afegão apoiado e armado por Washington.

Não é novidade que muitos no governo e nos meios acadêmicos chineses consideram os EUA uma potência em declínio irreversível. Para eles, isso torna o país mais perigoso e imprevisível, principalmente com um presidente considerado fraco, que estaria disposto a ações drásticas para se fortalecer domesticamente e evitar perder o controle do Congresso nas eleições de novembro deste ano. Num evento recente, uma fonte diplomática chinesa de alto escalão foi questionada por um repórter se o presidente Xi Jinping se encontrará este ano com Joe Biden. A resposta reflete um desdém declarado que seria impensável até pouco tempo atrás: “Para quê? Ele não tem poder”.

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O antagonismo com os EUA é o principal motor do realinhamento entre China e Rússia, e o comunicado conjunto divulgado no dia da abertura da Olimpíada de Inverno de Pequim é cheio de recados diretos e indiretos para Washington. Um deles é a rejeição ao termo “aliados”, que os americanos costumam usar com os países mais próximos. A parceria é definida como “um novo tipo de relacionamento entre grandes potências com base no respeito mútuo”, e que é “superior às alianças militares e políticas da Guerra Fria”.

A parceria estratégica entre Pequim e Moscou, que vinha se fortalecendo nos últimos anos, subiu mais um degrau no encontro entre Putin e Xi, ocorrido pouco antes da abertura da Olimpíada. Embora a rejeição da hegemonia do Ocidente no sistema internacional fosse uma mensagem recorrente nos contatos bilaterais dos últimos anos, alguns passos adicionais importantes estão presentes no comunicado, cujo título não esconde sua ambição: “Relações internacionais entrando numa nova era”.

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Não há menção à Ucrânia, mas o comunicado inclui pela primeira vez um endosso público da China ao repúdio da Rússia à expansão da Otan. Em retribuição, também pela primeira vez, a Rússia afirma que Taiwan é “parte inalienável da China” e manifesta sua oposição ao pacto de defesa firmado entre EUA, Austrália e Reino Unido (Aukus) no ano passado, com o claro objetivo de deter a expansão marítima da China. Ao defender as preocupações de segurança da Rússia na Europa, Pequim aproveita a crise na Ucrânia para fazer um paralelo com seu próprio interesse na Ásia e as ameaças impostas pelos EUA, observa o ex-primeiro-ministro da Austrália Kevin Rudd, um especialista em China.

Na véspera da Olimpíada de Inverno, o governo chinês considerou um insulto uma notícia publicada na imprensa americana de que Xi Jinping teria pedido a Putin que não invadisse a Ucrânia durante os Jogos. Zhao Lijian, porta-voz do Ministério do Exterior, disse que a notícia era “pura ficção”, e que fora divulgada apenas com o objetivo de causar divisões entre Pequim e Moscou. Pouco depois, no comunicado conjunto divulgado no dia da abertura da Olimpíada, os dois países declararam ter uma “amizade sem limites e sem áreas proibidas à cooperação”. É natural supor que essa amizade sem limites inclua consultas sob o risco de uma guerra. Os Jogos de Pequim vão até domingo.

Um acadêmico chinês especializado em América Latina lembra que o comunicado sino-russo também menciona a cúpula do Brics, que este ano será realizada sob a presidência da China. É uma demonstração de que o grupo continua tendo importância para os dois países, principalmente para a China, diz ele, que prefere não ser identificado. O presidente Jair Bolsonaro deveria usar o encontro com Putin em Moscou para melhorar a relação do Brasil com a China, completa o pesquisador, que explica: não há canal mais direto com Pequim hoje em dia do que Moscou.

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