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Incentivo à leitura

Em entrevista exclusiva, presidente de Portugal defende livros para combater desigualdade

Marcelo Rebelo de Sousa consulta acervo da Biblioteca de Celorico de Basto

Eu escrevia um texto em casa quando o telefone tocou: “Estou? Gian Amato? Aqui é Marcelo Rebelo de Sousa”. É trote. Imita direitinho, pensei por um segundo. Mas logo confirmei a autenticidade, porque só eu e o presidente saberíamos o assunto: livros.

Diante da proposta do governo brasileiro de voltar a taxar os livros no país e da proximidade do Dia Mundial do Livro, decidi escrever sobre a biblioteca pública de Celorico de Basto, que leva o nome do presidente.

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Pedi ao assessor da Presidência, Ricardo Branco, informações sobre as 200 mil doações de Marcelo. Se o presidente pudesse dizer algo, melhor. No lugar do e-mail protocolar, Marcelo telefonou e deu entrevista exclusiva ao Portugal Giro.

- Venho responder sobre os livros enviados para Celorico de Basto, onde minha família tem raízes - começou Marcelo.

Celorico de Basto é uma vila no Norte de Portugal, distrito de Braga. Tem 20 mil habitantes e 181 km2. Ali nasceu a avó Joaquina e virou a segunda casa do lisboeta Marcelo, que presidiu a Assembleia Municipal de 1997 a 2009. 

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A vila era o município mais pobre de Portugal no início dos anos 2.000. O índice de consumo era o mais baixo do país, com pontuação de 52,3 para um mínimo de 100.

Segundo dizem Marcelo, moradores e o prefeito, a biblioteca ajudou a tirar a vila do anonimato. E iniciar, lentamente, um capítulo de desenvolvimento. Já não é a mais pobre. Esta história será contada com mais detalhes na segunda-feira no Portugal Giro.

- O objetivo era simples: Celorico de Basto era o município mais pobre de Portugal. Mais pobre que os mais pobres dos arquipélagos dos Açores e da Madeira e do Alentejo ou Beira Interior. Havia de encontrar onde apostar no desenvolvimento. Entendi que era, a longo prazo, na cultura e na educação - disse Marcelo.

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A notícia do fim da isenção tributária sobre os livros no Brasil é um baque. E a justificativa da Receita Federal aumenta o drama: pobres não compram livros, argumenta o Fisco.

Então, como ter acesso, em qualquer lugar do mundo, a um objeto que já é caro para a maioria e não se encontra gratuitamente com facilidade?

- Há uma clivagem econômica e social muito acentuada. Quem tem dinheiro, tem mais dinheiro para comprar e acumular livros e lê mais. Filhos de pais com bibliotecas melhores leem mais e são educados para isso. Há quem compense através de bibliotecas públicas, mas devo dizer que é onde começa a desigualdade social: logo na família. Quem lê mais escreve mais e melhor. Marca o começo da vida. As escolas, sobretudo as públicas, têm o dever de corrigir essa desigualdade - explicou Marcelo, que é professor.

O Imposto sobre Valor Agregado (IVA) em Portugal tem três taxas: normal (23%), intermediária (13%) e reduzida (6%).  Os livros estão inseridos na reduzida. Sendo que esta taxa nos Açores e na Madeira são de 4% e 5%. Com preços entre €10 e €23, não podem ser considerados tão baratos diante do salário mínimo de €665. 

Assim, Marcelo admite que só o desapego promove igualdade na cultura e educação. E faz um apelo para o Dia Mundial do Livro, em 23 de Abril:

-A melhor maneira de incentivar a leitura é através de gestos exemplares. Quem escreve, tem que escrever mais e tornar os livros que escreve mais acessíveis. Quem edita, tem que editar mais. Quem é proprietário e colecionador, no meu caso desde os 14 anos, tem que colocar os livros ao acesso de todos.

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Estudantes consultam acervo da biblioteca de Celorico de Basto

É o que Marcelo faz em Celorico de Basto há 19 anos. Vários volumes servem de suporte para a rede de educação municipal e estudantes de outras cidades que precisam consultar volumes e documentos.

-Convenci vários amigos escritores e professores, de Lisboa e do Porto, a fazerem o mesmo em suas terras de origem. Deu resultado. Foi uma forma de descentralização cultural. Oferecer a uma biblioteca de Lisboa seria desperdício, porque não teria o mesmo efeito social que teve naquele que era o município mais pobre e hoje não é mais. Já há uma dezena mais pobres - afirmou.

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A biblioteca sozinha não tirou a vila da lanterna do ranking da pobreza. Mas serviu de palco. Ao decidir concorrer à Presidência em 2005, Marcelo apresentou sua candidatura no auditório da biblioteca, onde encerrou aquela campanha e também a da reeleição, em 2021.

A cidade ganhou notoriedade e tem trabalhado para melhorar a infraestrutura, atrair investimento e reter população. Depois da biblioteca, Marcelo apadrinhou uma feira do livro, que atraiu ao longo dos anos políticos, escritores, jornalistas, turistas e potenciais investidores.

-Embora apostasse em novos pólos industriais, que a vila não tinha, criou e foram crescendo, era mais importante, a prazo, a educação e a cultura. Nesse sentido, foi uma aposta crucial e que continuará, porque a biblioteca apoia as escolas - disse o presidente.

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Marcelo comprava lotes inteiros com quatro mil volumes em leilões. Diz ter encontrado bibliotecas inteiras deixadas como heranças e que eram despedaçadas pelos herdeiros, diluindo o valor do espólio. Ele diz doar cerca de 200 livros por mês.

-Todo mês buscam o que vou concentrando em minha casa. No confinamento, com livrarias fechadas e atividade editorial parada, reduziu, mas a doação segue intensa - contou.

Casarão do começo do século XX onde funciona a biblioteca de Celorico de Basto

Marcelo preferiu doar a coleção a deixá-la como herança:

- Meu filho está vivendo no Brasil e trabalha pelo mundo. Tenho uma filha dedicada à ação social numa escola e em bairros vulneráveis. Nunca teriam casa para guardar a biblioteca, hoje isso não é mais possível. Só na primeira vez que doei foram 40 mil livros.

Até a biblioteca de Celorico teve que ser adaptada para a coleção.

- A primeira fase utilizava o velho casarão de um “brasileiro” (português que ia para o Brasil e depois voltava), do começo do século XX.  Na segunda fase, houve alargamento com o novo núcleo, porque já era insuficiente. Na terceira fase, veio o auditório - disse.

 

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