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A torcida que tirou o futebol do armário

Foto (Foto: A Coligay no estádio Olímpico, em 1979: torcida contra a homofobia/Divulgação/Ricardo Chaves)


Livro sobre a Coligay, grupo pioneiro de torcedores homossexuais, revela história delicada entre esporte e preconceito

Por Bolívar Torres

Em 1977, um grupo de torcedores do Grêmio de Porto Alegre subverteu o ambiente reconhecidamente normativo e machista do esporte mais popular do Brasil, invadindo os estádios com visuais afeminados e trejeitos irreverentes. Era o surgimento da Coligay, uma das primeiras torcidas formadas exclusivamente por homossexuais — e até hoje a mais duradoura experiência do gênero no país, embora tenha resistido apenas seis anos. No momento em que o racismo entra definitivamente na pauta do futebol mundial, o lançamento de “Coligay — tricolor e de todas as cores” (Editora Libretos, 150 páginas), do jornalista Léo Gerchmann, chama a atenção para outra discriminação notável, mas muito menos debatida neste âmbito. Embora seja um dos exemplos mais bem-sucedidos de aceitação do diferente, a trajetória da icônica torcida contada no livro é também a história de um esporte que não consegue assumir seus preconceitos.

— Na época em que a Coligay surgiu, era outro mundo: o assunto nacional era o divórcio de uma personagem na novela das oito — lembra Gerchmann, repórter do jornal “Zero Hora”. — Havia uma divisão de costumes da polícia que estava de olho nos rapazes da Coligay. Mas eles foram valentes e desbravadores. Deram um bofetão no machismo.

Mesmo com o conservadorismo geral, o ambiente no final da década de 1970 era de abertura política e cultural. A Coligay surgiu nesse contexto, idealizada pelo empresário e cantor Volmar dos Santos. Dono da Coliseu, a principal boate LGBT de Porto Alegre na época, ele reuniu amigos e frequentadores em torno do projeto pioneiro. Quando se instalaram pela primeira vez nas arquibancadas do estádio Olímpico, a primeira reação entre imprensa, jogadores, dirigentes e torcedores “convencionais” foi de estranheza. Muitos ficaram chocados, mas a maioria das pessoas, conta Gerchmann, se divertiu com a irreverência dos integrantes, que chegaram até a criar uma versão gay para o hino gremista.

Mesmo quando provocada, a Coligay nunca arranjava confusão. Volmar colocou os integrantes para treinar karatê, mas eles só se metiam em briga quando tinham de se defender dos ataques de outros torcedores. Gerchmann relata um episódio em que os “moços” deram uma surra em torcedores rivais que lhes lançavam pedras — e arrancaram aplausos dos presentes. Ao conquistar seu espaço no ambiente futebolístico e divulgar — à sua maneira — a causa LGBT, a Coligay quebrou tabus e desafiou os costumes. Não só inspirou outras torcidas do gênero (como a Flagay, no Rio), como ainda ajudou a arejar o clima essencialmente masculino dos estádios.

— Mulheres que se arriscassem a frequentar os estádios eram chamadas de vadias — diz o autor. — A Coligay abriu espaço para elas.

Mas nem tudo são flores. Embora o livro tenha sido bem recebido por dirigentes gremistas, trata-se do primeiro registro da história da Coligay. Mesmo com todos os serviços prestados ao Grêmio (como campanhas para ajudar a finalizar o estádio Olímpico), ela nunca havia sido lembrada oficialmente pelo próprio clube. Vale ressaltar que, na época, os jogadores gremistas “defendiam” os membros da Coligay com a afirmação de que eram “bichas, mas as nossas bichas” — uma frase que, analisada a fundo, não soa tão positiva quanto muitos acreditam. A maneira como a homossexualidade ainda é vista no futebol — e a vida curta das torcidas gays — também levam a crer que o sucesso da Coligay foi apenas um lapso de tolerância em um ciclo permanente de discriminação.

— A Coligay é uma exceção, gloriosa exceção para o Grêmio, aliás — diz Gerchmann — A Flagay, em 1979, tentou se aventurar no Maracanã. No primeiro jogo da torcida, liderada pelo Clóvis Bornay, o supertime do Flamengo levou 3 a 0 do Fluminense. Até o Zico errou pênalti. O presidente da época, o Márcio Braga, pôs a culpa em quem? Na Flagay!

Apesar da homofobia ainda dominar o futebol, Gerchmann acredita que há mais tolerância nos dias de hoje. Porém, os recentes debates sobre preconceito no esporte ainda não chegaram às minorias sexuais. Ao contrário de termos como “macaco”, gritos de “bicha” e “viado” são considerados normais nos estádios. Segundo o sociólogo Ronaldo Helal, é preciso fazer uma diferenciação entre o que é preconceito e “relação jocosa”.

— “Viado” é um termo que você usa entre amigos, muitas vezes de forma carinhosa — avalia Helal, doutor em sociologia pela New York University e considerado um  dos pioneiros nos estudos acadêmicos sobre sociologia do esporte no Brasil. — Frequentemente não tem a conotação da sexualidade. Já macaco é sempre insulto, pois você não se utiliza desta palavra para ofender um sujeito branco. O termo possui uma clara ofensa moral ao negro. Quando a torcida xinga o juiz de “viado”, ela nem sempre está pensando na sexualidade dele. Precisamos contextualizar os momentos em que estas coisas são ditas e cantadas. A sociedade é homofóbica em termos gerais. A homofobia ganha uma dimensão maior no futebol porque este é visto como um esporte de homens, como se gays não fossem homens.

O fundador da Coligay, Volmar Santos, que hoje vive na cidade de Passo Fundo (RS), tem uma visão diferente. Para ele, muitos gays se ofendem quando ouvem esses termos nos estádios.

—“Macaco” e “viado” são ofensas, e tudo deveria ser tratado como tal — opina. — Mas, para o debate sobre a homofobia no futebol evoluir, é preciso mais união entre os gays. O próprio lançamento do livro (sobre a Coligay) provocou uma ciumeira por aqui. Afinal, há muitos ativistas LGBT lutando por seus direitos, mas isso raramente ganha espaço na mídia como o livro ganhou.

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