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Ação cultural, mudança social: artigo de George Yúdice

Projetos nas periferias do Brasil vencem divisão entre alta cultura e arte popular, diz pesquisador americano, que participa de debate no Oi Futuro do Flamengo dia 18, às 19h30

Por George Yúdice

Foto (Foto: Foto de Michel Filho / Poetas participam do Sarau do Binho na Biblioteca Marcos Rey, no Campo Limpo, zona norte de São Paulo)

Há 40 anos, os futurólogos vaticinavam uma economia da experiência, onde as emoções e as interações seriam o combustível do crescimento econômico. Nesse futuro, os sujeitos são encorajados a se expressar e elaborar sua sensibilidade esteticamente, para aproveitar melhor o mundo onde se nivelam e consubstanciam as necessidades hierarquizadas de Maslow, segundo o qual as de nível mais baixo (as fisiológicas e de segurança) devem ser satisfeitas antes das de nível mais alto (relações interpessoais, a estima e a realização pessoal). É só pensar nas atividades de coletivos como o AfroReggae para perceber que elaboração estética, estima, comunicação, interação e segurança não podem ser separadas. Uma dimensão fortalece outra.

É esse o futuro em que vivemos hoje em dia. Mas ele encontra-se dividido entre a enorme exploração consumista voltada ao lucro e as múltiplas iniciativas que adestram e puxam a criatividade dos sujeitos para facilitar o discernimento das possibilidades do mundo e incidir nele. Existem pontes entre as duas tendências — por exemplo, a espetacularização e o branding da experiência, o uso das novas tecnologias e a participação nas redes sociais — mas é a segunda que procura levar adiante ações propositivas.

A cultura ocupa um lugar privilegiado neste futuro em que vivemos, tanto para o consumismo quanto para a ação social. Mas que cultura é essa? É uma cultura que ultrapassa a divisão moderna entre arte autônoma e transcendente e cultura de massas ou popular. As características atribuídas a uma ou outra categoria acham-se distribuídas de outra maneira, o que se verifica prestando atenção à experiência dos sujeitos. Quem diz que um funk ou tecnobrega não são transcendentes? Quem diz que Clarice ou Kafka não interessam aos adeptos do hip hop? Como classificar a cultura nos saraus, onde se recitam poemas clássicos, amadores, depoimentos, narrações, músicas de vários tipos e, sobretudo, o rap? Grande parte do público do Sarau da Cooperifa vem do bairro nos arredores do Bar do Zé Batidão, em Chácara Santana (em São Paulo), mas também inclui pessoas de classe média interessadas pela poesia e a cultura da periferia. Há velhos, crianças, adolescentes e adultos de todas as profissões. Cada sarau apresenta uma grande variedade de estilos, para todos os gostos. Como explica Heloísa Buarque de Hollanda, periférico não gosta só de pagode, funk e hip hop, mas também dos grandes escritores. Uma visita à Livraria Suburbano Convicto, do escritor Alessandro Buzo, também em São Paulo, confirma esse ecletismo: acham-se Kafka, Bukowski, Pessoa, Neruda e João Cabral de Melo Neto ao lado de Ferréz, a coletânea “Poetas do Sarau Suburbano” (organizada por Buzo) e a coleção inteira “Tramas urbanas”, da Aeroplano, editora dirigida por Heloísa. Achamos também Racionais MC’s, Emicida, funk e outro milhão de rappers dando cotoveladas com os Beatles, Lady Gaga, Tim Maia, Chico Buarque e Piaf.

A ação cultural — que é como prefiro chamar o ativismo heterogêneo dos coletivos culturais — cumpre hoje em dia grande parte do que o ensino formal não consegue prover. Aliás, a educação massiva nunca alcançou incorporar a vivência dos marginalizados, alavancar as suas capacidades criativas. A ação cultural explora repertórios muito diversos de códigos que nos permitem articular as competências cognitivas humanas: visuais, dramatúrgicas, lógicas, emocionais, gastronômicas etc. A abordagem é mais integral, abrange todas as maneiras de ser e fazer e não estabelece hierarquias entre o passado e o presente, o que permite relacionar-se melhor com o outro, com quem não é como eu.

A ação cultural tem uma vantagem que a diferencia das iniciativas da modernidade: não se movimenta segundo compartimentos autônomos (arte, emprego, lazer, educação, mercado, direito, segurança etc). Seus gestores operam em complexas cadeias de articulação, possibilitando a intersetorialidade e a abertura da arte e da cultura a novas linguagens e narrativas.

Considere-se a Escola Livre de Cinema de Nova Iguaçu. Segundo seu fundador, Marcus Vinícius Faustini, não é só uma escola, mas um recurso para pesquisar a realidade circundante e reinventar o território por meio de imagens “que revelem seu olhar e seu lugar no mundo, recebendo estímulos de diversas técnicas, circulando pelas artes plásticas, cordel, literatura, técnicas fotográficas, edição de imagens, do som, da luz e o universo da palavra”. Os alunos exploram a cidade, que se assume como uma série de locais para pesquisa, construção do conhecimento e de representação audiovisual. Eles se integram à vida da cidade e procuram incidir nela. Também se profissionalizam e entram no mercado audiovisual.

Uma grande diversidade de iniciativas de ação cultural opera de maneira análoga. A intervenção no território se amplia no projeto mais recente do Faustini, a Agência de Redes para a Juventude, uma incubadora de ideias para serem implementadas na transformação das suas comunidades. Um caso interessante é o Coletivo Puraquê, em Santarém (PA), que forma jovens na separação de resíduos sólidos, consegue computadores e oferece capacitação em desenho de software livre e serviços digitais. Combina a ação ambiental com a tecnológica e a cultural (web rádio, web TV, estúdio de música) e opera na economia solidária com sua própria moeda, administrada pelo Banco Muiraquitã.

O futuro já está aqui. Podemos vê-lo no ethos que compartilha todas essas iniciativas e protagoniza o ciclo Espaços de Reencantamento, Afetos e Utopias de um Novo Mundo, projeto realizado com o Oi Futuro, que reúne muitos dos agentes que levam para frente a mudança social a partir da arte e a cultura.

George Yúdice é professor de Estudos Latino-Americanos da Universidade de Miami e autor de “A conveniência da cultura: usos da cultura na era global” (UFMG), entre outros livros. Dia 18, às 19h30m, ele participa do debate “O futuro da cultura e a ação social” no Oi Futuro do Flamengo (R. Dois de Dezembro 63), parte do ciclo Espaços de Reencantamento, com curadoria de Ana Lúcia Pardo

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