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Augusto de Campos fala sobre seu encontro com Jorge Luis Borges

por Guilherme Freitas

Em novo livro, concretista traduz poemas do escritor argentino e narra visita à casa do autor de ‘Fervor de Buenos Aires’, um marco da vanguarda que completa 90 anos

Por Guilherme Freitas

Foto (Foto: Jorge Luis Borges em sua casa, em Buenos Aires, com Augusto de Campos e sua mulher, Lygia / Foto de Roland de Azeredo Campos / Divulgação)

Em fevereiro de 1984, durante uma viagem a Buenos Aires com a família, Augusto de Campos telefonou a Jorge Luis Borges para propor um encontro. O argentino não conhecia o poeta brasileiro que se apresentava como seu admirador, mas, para surpresa do próprio Campos, aceitou prontamente, e na mesma manhã o visitante viu-se na sala da mítica residência da Calle Maipu, diante daquele que, à época, já havia se firmado como um dos grandes nomes da literatura universal. Aos 84 anos, cego, apoiado na inseparável bengala irlandesa de madeira, Borges recebeu Campos, a mulher e o filho para uma conversa que durou horas e continuou em outra manhã da mesma semana.

Campos relata esse encontro em “Quase Borges” (Terracota Editora), para o qual também selecionou e traduziu uma antologia de 20 poemas do argentino. O livro será lançado dia 16, às 14h30m, em um debate com o escritor paulista e o poeta Omar Khouri na Casa das Rosas, em São Paulo. Um dos mentores da poesia concreta, o autor de “Viva vaia” reconhece afinidades com Borges, mesmo não tendo sido diretamente influenciado por ele:

— Os textos de Borges, em prosa ou poesia, me parecem contrastar quase toda a produção literária hispanoamericana, recarregada de linguagem retórica, metafórica e surrealizante. Como Machado de Assis, é um escritor fora do lugar, um estrangeiro na “América que não existe”, neo-saxão entre parafranceses — diz, por e-mail.

Na entrevista, publicada em 1984 num periódico da Biblioteca Mário de Andrade, Campos anota impressões vívidas deixadas por Borges. Recorda sua gentileza, os “olhos abstratos” e o gosto por conversar a partir de associações de versos e citações obscuras: vai de Dante a Omar Khayyam no mesmo fôlego, comenta a beleza e a tristeza do “Finnegans Wake” de James Joyce, e diverte-se com a insólita teoria de que Edgar Allan Poe teria sido um anão.

Borges demonstra um entusiasmo quase juvenil por idiomas, como o japonês, que estava estudando, e o anglo-saxão, no qual recita o Pai Nosso. E também pelo português, cujo domínio rudimentar faz questão de exibir ao interlocutor brasileiro. Declama a abertura de “Os Lusíadas”, de Camões (sobre quem escreveu um soneto), e insiste ter lido “Os sertões”, de Euclides da Cunha. Mas deixa entrever os limites de seu conhecimento: “Me falaram de um poeta. Pessoa”, diz a certa altura. A explicação de Campos sobre o português e seus heterônimos deixa Borges intrigado: “Também os faraós egípcios mudavam de nome, a cada dez anos”, comenta.

— Como sempre acontece, Borges, com todo o seu saber enciclopédico, tudo conhecia e não conhecia nada. Falo-lhe do suicídio de Maiakóvski e ele me diz: “No sabía…” Como dizia Pound, “não se deve exigir tudo de um homem só”.

“Quase Borges” é lançado quando se completam 90 anos da estreia do argentino na poesia, com “Fervor de Buenos Aires”, de 1923, marco da vanguarda hispanoamericana. Mas a antologia reúne sobretudo poemas de sua fase tardia, quando a perda progressiva da visão fez com que se concentrasse em formas fixas, como nos sonetos “Spinoza”, sobre o filósofo do século XVII (“Liberto da metáfora e do mito/ Lavra um árduo cristal: o infinito/ Mapa do Ser que é todas as estrelas”), “Labirinto” e “Um cego” (“Repito que perdi unicamente/ A aparência superficial das coisas”).

Na entrevista, Borges diz a Campos preferir seus últimos livros a suas aventuras vanguardistas. Mas o “anacronismo” dos sonetos não incomoda o poeta concreto, que prefere destacar a “admirável concisão” dessa fase da obra de Borges:

— Sua poesia torna-se uma espécie de síntese da síntese de seus contos e estudos, que já são sínteses de supostos romances ou supostos ensaios que sua concisão não lhe permitia. Embora mais notável e notório pela sua prosa, ele possuía o tédio que têm os poetas pela parolagem prosística — diz Campos, comparando um soneto de Borges em homenagem a John Keats com um livro de 675 páginas de Julio Cortázar sobre ele, que tentou ler enquanto traduzia o poeta inglês. — Parei no primeiro terço. Borges me disse tudo o que eu queria saber em 14 linhas.

Um dos mais reconhecidos tradutores brasileiros, autor de versões de Cummings, Pound, Mallarmé e Maiakóvski, entre outros, Campos sugere uma relação entre as teorias concretistas sobre a tradução (Haroldo, seu irmão, a definia como a “transcriação” de um texto) e as reflexões de Borges sobre o assunto. Também um tradutor prolífico, Borges considerava que as boas versões “haveriam de se sustentar por si próprias como poemas”, “teriam que ser criativas, e portanto livres”, lembra Campos. Ele aponta a métrica perfeita e o vocabulário preciso do argentino como os maiores desafios para a recriação de seus poemas em português:

— A maior parte das traduções que se fazem dele usa e abusa de pés quebrados e rimas chãs. Como quase ninguém mais sabe metrificar entre nós, poucos percebem. Décio Pignatari tirava o maior sarro dos antivanguardistas que nos recriminavam porque declarávamos “encerrado o ciclo histórico do verso” em nossos manifestos. Dizia: “Do que é que eles reclamam? Ninguém mais sabe métrica, ninguém mais escreve em versos…” Mandava todo mundo ler Olavo Bilac. Paradoxalmente, os concretos sabiam fazer versos, e foi por isso mesmo que acabaram com eles.

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