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Estética da penitência

Pouco analisada até agora, a conversão religiosa de Murilo Mendes deixa pistas de como o autor mineiro rompeu com as vanguardas de seu tempo para criar uma poética pessoal única, que funde catolicismo primitivo e mentalidade moderna.

Por Silviano Santiago*

Foto (Foto: Murilo Mendes em visita a um claustro: obra sobre peregrinações pela Itália franciscana, pertencente ao amigo e pintor Ismael Nery, foi leitura preciosa para o poeta)


“A época em que Ismael Nery viveu era muito desfavorável ao catolicismo no Brasil. Os intelectuais eram, na grande maioria, agnósticos, comunistas ou comunizantes. Mesmo muitos com tendências espiritualistas disfarçavam-nas, por respeito humano. A religião aparecia-nos como qualquer coisa de obsoleto, definitivamente ultrapassada. O catolicismo era sinônimo de obscurantismo, servindo só para a base de reação.”

                                               (Murilo Mendes, “Recordações de Ismael Nery”, 1948)

Perseverança e acaso favorecem a redação deste artigo sobre a formação religiosa do poeta Murilo Mendes na década de 1920. Sempre julguei que a critica literária, na leitura e análise da poesia de Murilo Mendes, passava ao largo da importância da conversão do poeta ao catolicismo. Refiro-me à conversão no sentido cristão do termo e não à inquietação religiosa, comum a outros e muitos, entre eles Mário de Andrade e Jorge de Lima. Vale dizer que a crítica não abordava a originalidade maior da sua poesia dentro do Modernismo, tal como o movimento se define a si a partir dos princípios defendidos na Semana de Arte Moderna, em 1922.

Propomos hoje que Murilo retira o foco de luz da ruptura operada pelos manifestos futuristas de Filippo Marinetti e pela vanguarda europeia, ruptura esta que encaminhava a literatura e as artes brasileiras a uma estética construtivista e minimalista. Desloca o fulcro do interesse e o reorienta para dar-lhe forma e significado numa tradição tomada de empréstimo do voto de pobreza, como defendido pelo “penitente” medieval, e do ideário político-social de São Francisco de Assis. Difundia uma poética pessoal e única, uma “fusão do catolicismo primitivo com a mentalidade moderna” (nos termos dele) que dá origem a sintaxe inesperada e imagens complementares ou paradoxais.

Como não havia etiqueta vanguardista para compreender os poemas comprometidos com a tradição medieval (em tempos onde domina a ruptura com o passado) e com a visão cristã/franciscana (em tempos leigos), dizia-se que eles beiravam o ideário surrealista, embora este não servisse para explicá-los totalmente. E fiquei à espera.

Presente do acaso

O acaso colocou-me nas mãos o levantamento do acervo do poeta feito por Júlio Castañon Guimarães. Abro uma janela na listagem feita por ele e cito suas palavras: “Há casos curiosos no acervo, como uma edição de 1922 de um livro intitulado “Pèlerinages franciscains” [Peregrinações franciscanas, do dinamarquês Johannes Joergensen], que apresenta anotações de duas pessoas, as de Murilo Mendes e as de seu grande amigo, o pintor Ismael Nery”. No livro lido por quatro olhos, cujas muitas páginas estão sublinhadas por quatro mãos, descubro com espanto as palavras que Murilo deixou escritas: “Este livro contém à pgs. 175, 176 e 240, anotações de Ismael Nery e as suas iniciais autógrafas.// É um livro-relíquia.// Rio, 6.4.1934. // M.M”.

A condição de relíquia — preservada pelo convertido à fé cristã no dia da morte do Amigo — livra a escrita das peregrinações franciscanas dos golpes assassinos do tempo. Relíquia, informa-nos o Dicionário Houaiss, é “o que resta do corpo do santo”, é “o nome dado aos objetos que pertenceram a um santo ou que tiveram contato com seu corpo”.

Ao ter a persistência presenteada pelo acaso, resolvi intervir na bibliografia muriliana canônica, inaugurada de maneira auspiciosa por Mário de Andrade no célebre ensaio “A poesia em 1930”, no qual o poeta mineiro sobressai como “surrealista” em grupo de quatro poetas, um experiente (Manuel Bandeira) e três estreantes (Carlos Drummond, Augusto Frederico Schmidt e Murilo). Em virtude de o livro de estreia de Murilo, “Poemas” (1930), ser exemplo de dicção poética que escapa de modo surpreendente ao padrão imposto e legitimado pelos seguidores da Semana de Arte Moderna é que Mário talvez o considere “historicamente o mais importante dos livros do ano”.

O livro seguinte de Murilo, “História do Brasil” (1932), corrobora minha análise pelo avesso. Murilo se equivoca poeticamente ao querer deixar de ser seu contemporâneo para ser contemporâneo dos pares modernistas. “História do Brasil” apresenta poemas escritos com dicção e temas históricos tomados de empréstimo da coleção “Poesia Pau-Brasil” (1924) e do “Manifesto Antropófago” (1928), ambos de Oswald de Andrade. Por decisão do autor, a coleção de poemas publicada em 1932 não será republicada durante sua vida e foi excluída do volume que apresentava ao público sua obra poética reunida, “Poesias — 1925-1955”. Na Advertência que precede o conjunto dos livros até então esparsos, Murilo se justifica: “Excluí as poesias satíricas e humorísticas que compõem a ‘História do Brasil’, pois, a meu ver, destoam do conjunto da minha obra; sua publicação aqui desequilibraria o livro”. Não foi Murilo quem nos legou esta máxima: “A Igreja Católica é tão necessariamente verdadeira que eu preferiria errar com ela a acertar com os seus adversários”?

Hoje, quando o acervo pessoal de Murilo Mendes está depositado no Museu de Arte que leva o nome do poeta, localizado na cidade natal, Juiz de Fora, e dele dispomos, faz-se urgente contrabalançar o julgamento de Mário e retomar páginas de Sérgio Milliet no “Diário crítico”, datadas de 7 de fevereiro de 1942. Naquele dia, tendo por horizonte a temática complexa da morte na poesia modernista, Milliet elabora a busca do “anseio de unidade” que é entregue pela poesia de Murilo a todo e qualquer leitor. Segundo o crítico, o anseio de unidade leva o poeta “a voltar à fonte de vida porque dela fomos expulsos numa tremenda multiplicação”. E acrescenta: “como um paleontologista que reconstitui o animal pelo osso encontrado, o poeta, com cada um dos fragmentos catados em sua caminhada, reforma a unidade primeira e primordial”.

Apesar de não respaldar com exemplo o tratamento crítico do poeta como paleontólogo, não estaria Milliet se referindo, entre outros, ao poema “A flecha” que, transformada em metáfora (a flecha do tempo), tem traduzido a evolução humana duma perspectiva linear? Ali lemos em evidente delito contra o lugar-comum dialético: “Eis-me sentado à beira do tempo/ Olhando o meu esqueleto/ Que me olha recém-nascido”. E os versos finais do poema enunciam o paradoxo de São Pedro: “Na pedra que não se move/ O motor do mundo avança”. Não é o caso de lembrar este outro aforismo de Murilo: “O comunismo é revolucionário diante do capitalismo, e conservador diante do cristianismo”?

Escrito por Joergensen, o livro das peregrinações pela Itália franciscana é relíquia do amigo e pintor Ismael Nery, falecido prematuramente de tuberculose no dia 6 de abril de 1934, assim como o é o poema “Meu novo olhar”, escrito por Murilo Mendes e incluído no livro “Tempo e eternidade”. Lemos nesse poema o sucedâneo da anotação aposta ao livro de Joergensen: “Meu novo olhar é o de quem assistiu à paixão e morte do Amigo,/ Poeta para toda a eternidade segundo a ordem de Jesus Cristo,/ E aquele que mudou a direção de meu olhar;/ É o de quem já vê se desenrolar sua própria paixão e morte,/ Esperando a integração do próprio ser definitivo / Sob o olhar fixo e incompreensível de Deus”.

Durante os poucos anos de vida, Ismael foi também pródigo em homenagens ao poeta. Legou-nos o óleo “Retrato de Murilo”, a aguada “Retrato do artista com Murilo” e, possivelmente, o nanquim “Composição surrealista”.

A leitura do relato da peregrinação franciscana assinado por Joergensen e o poema “Meu novo olhar” atestam a conversão —“o novo olhar” — de Murilo por obra e graça de Ismael Nery, enterrado vestindo o hábito dos franciscanos (é bom salientar), numa homenagem dos frades do Convento de Santo Antônio à sua ardente fé católica.

Em carta à biógrafa Laís Correa de Araújo, datada de 6 de abril de 1970, Alceu de Amoroso Lima alerta para o equivoco perpetrado pela tradição historiográfica no tocante à conversão de Murilo e direciona o facho de luz da crítica mineira para a verdadeira atuação de cada um dos principais membros do grupo católico carioca. Salienta, finalmente, que o trabalho lento de conversão de Murilo à fé cristã foi provocado e apressado por Ismael Nery e informado pela preocupação estética (e não teológica). Murilo viera a conhecer Ismael em fins do ano de 1921, na seção de arquitetura e topografia do Patrimônio Nacional (Ministério da Fazenda). Escreve Alceu:

“Gostaria muito de atender à sua solicitação quanto à circunstância da conversão do nosso Murilo Mendes. Acontece, porém, que essa conversão, creio eu, ocorreu antes do nosso primeiro encontro. Esse encontro, aliás, foi por assim dizer anônimo. Creio que foi o seu convívio com Ismael Nery que provocou ou pelo menos apressou a conversão definitiva de Murilo. Leonel Franca, creio eu, também teve influência na conversão de Murilo, que foi profunda e extremamente meditada. Não creio que tivesse tido nenhuma “iluminação” do tipo de André Frossard ou de Paul Claudel, mas um trabalho lento do tipo de John Henry Newman, embora do ponto de vista estético, sempre fundamental em Murilo, e não teológico”.

Vidas modelares

O acaso é pródigo em associações reveladoras e, no presente caso, se alicerçado arqueológica e racionalmente no “livro-relíquia”, ele nos fornece pistas para se chegar a um modelo europeu de metamorfose religiosa com vistas, por um lado, ao “desenvolvimento do sentido poético da vida” (apud “O discípulo de Emaús”) e, pelo outro, ao modelo franciscano de participação político-social cristã, a que voltaremos. Durante os anos 1920, a solidariedade comunitária, que “jamais fecha ao pobre o olhar e a bolsa” (“A idade do serrote”), era vetor desconhecido dos intelectuais e artistas brasileiros inclinados à esquerda. Julgavam o catolicismo como mero obscurantismo, como diz a epígrafe deste artigo. Ao destacar a opção pelo legado franciscano, o modelo de conversão muriliano torna-se desconhecido da maioria dos católicos brasileiros. Na década de 1930, unidos, eles buscarão valores conservadores e elitistas que nortearão o agrupamento Ação Católica, no Rio de Janeiro, estudado por Francisco Iglésias em “O pensamento reacionário de Jackson de Figueiredo”.

Pode-se tentar rastrear o aparecimento do livro “Pèlerinages franciscains” no universo de Ismael e de Murilo. Se não for de todo falsa a hipótese que levanto, ele surge nos primeiros anos da década de 1920 e representa o desassossego existencial de muitos artistas em vários casulos. Nestes, as “inquietações religiosas”, comuns a artistas e intelectuais extraviados do caminho de Cristo, atuam como crisálidas que maturam o momento definitivo de cada um pela afirmação subjetiva pelo amor ao Cristo e pela verdade. Se não for falsa a hipótese, o livro teria a ver com as duas viagens de estudo de Ismael a Paris, em particular com a primeira, devido ao fato de o jovem pintor ter-se matriculado na Académie Julian em 1920, e de ter convivido com importantes artistas franceses e estrangeiros que lá aprimoraram ou aprimoravam sua arte.

Naquela Academia Ismael teve acesso à tradição pós-impressionista de vanguarda, representada desde os fins de 1880 pelos fundadores do grupo Nabis, que tinham em Gauguin o verdadeiro mestre. Nabis vem do hebreu “navi”, que significa profeta ou vidente e indicia o fato de que o grupo de artistas se exprimia pelo caráter sagrado da pintura. Na Academia, graças à projeção no meio artístico francês da arte italiana e do exemplo de São Francisco de Assis, Ismael pôde ter tido acesso a uma série de vidas modelares de convertidos franceses e estrangeiros. À página 128 do livro-relíquia de Joergensen, lemos esta bela amostragem de proselitismo do autor dinamarquês a favor da vida intelectual italiana e franciscana:

“Ah! Itália, minha Itália. Cara Itália, como te vejo e te sinto e te amo! Será que conseguirei levar os compatriotas a compartilhar meu interesse por ti, a te compreender e a te amar como eu! De há muito a Alemanha ganhou seu lugar na nossa vida intelectual. Mais tarde, a França e a Inglaterra se aproximaram de nós. Mas será que durante nossa vida não haverá um espaço livre para a Itália, para essa autêntica, real, simples e profunda Itália que, noutro dia, no mosteiro de Fonte-Colombo, chamei de Itália franciscana! E será que me engano quando imagino que minha missão em vida consiste exclusivamente em levar meus compatriotas a conhecer essa Itália?”

Naquela Academia, Ismael talvez tenha tomado conhecimento da intensa amizade entre o escritor dinamarquês Johannes Joergensen (1866-1956), autor do livro-relíquia, e um antigo estagiário na mesma academia, Mogens Ballin (1871-1914), filho de importante família judia dinamarquesa, escultor e ourives especializado em prata e estanho que, no passado, tinha tomado aulas de pintura com a conterrânea Mette Sophie Gad, futura esposa de Gauguin, mestre dos Nabis. No ano de 1892, Ballin faz longa viagem à Itália e se converte ao catolicismo. No mês de janeiro de 1893, ele é batizado em Fiésole, na Toscana. Sabe-se que o encontro de Joergensen com o artista judeu convertido representa um marco na vida de ambos.

Embora fosse poeta e também tradutor de Charles Baudelaire e de Paul Verlaine, Joergensen, de família luterana, não tinha encontrado até então nas literaturas estrangeiras a profundidade espiritual que sua alma de artista buscava. Em 1894, por sugestão do seu amigo Mogens Ballin, Joergensen decide visitar a Itália pela primeira vez. Os dois param na cidade de Assis. Fascinado pela forte impressão causada pelo encontro com a arquitetura e a arte italiana de fundo religioso, e principalmente pelas leituras de e sobre São Francisco de Assis — como está dito na passagem que escolhemos para citar acima —, Joergensen se converte também ao catolicismo e abraça o amigo recém-convertido. Daquele ano data sua devoção à vida e à obra de São Francisco de Assis.

Joergensen virá a narrar sua própria conversão em “Livre de route” (1898), inspirado no livro “En route” (1895), onde o romancista francês J.-K. Huysmans descreve sua própria conversão ao catolicismo ortodoxo, tendo como cenário o monastério da Trappe de Notre-Dame-d’Igny (França), fundado por São Bernardo em 1127. Em 1903, Joergensen será autor das “Peregrinações franciscanas”, traduzido ao francês por Teodor de Wizewa, cuja edição de 1922 é lida e anotada no Rio de Janeiro pelo artista Ismael e pelo poeta Murilo talvez no mesmo ano da Semana de Arte Moderna.

O livro dentro do livro

As páginas do exemplar de “Pèlerinages franciscains” trazem muitas das margens sublinhadas com linha vertical simples ou dupla, à esquerda ou à direita do texto. A linha vertical duplicada insiste na importância maior do trecho, como será o caso das sucessivas páginas consagradas à leitura por Joergensen da conversão de Santa Ângela de Foligno, tal como narrada por ela ao padre-confessor, Irmão Arnaud (pp. 184-189). O exemplar traz ainda inúmeros parágrafos sublinhados com linha horizontal.

O conjunto dos sublinhados fascina e nos garante a escolha impulsiva, pertinente, delicada, amorosa ou reflexiva de certas passagens do livro-relíquia por Ismael e por Murilo. Como a assinatura de Ismael aparece apenas em três páginas, somos levados a crer que o substantivo das inúmeras marcas de leitura pertence a Murilo. Nossa leitura não será, por sua vez, do livro assinado pelo escritor dinamarquês, cujos dados relevantes já foram fornecidos; será antes leitura-de-uma-leitura, leitura duma espécie de pequeno livro extraído do maior, que o consultor poderá imprimir para uso próprio caso some as muitas páginas sublinhadas em vertical com outras, onde os parágrafos estão sublinhados em horizontal.

A partir da leitura do livro dentro do livro poderemos enunciar os princípios fundadores do carisma franciscano, que serão comuns ao artista e ao poeta brasileiros. No caso de Murilo, seria importante contrastar os sublinhados verticais e horizontais com alguns capítulos curtos de “A idade do serrote” (1968), memórias da infância mineira. Na prosa publicada em 1968, salientam-se as figuras do pai, discípulo de Ozanam, e do Padre (convertido) Júlio Maria que, com o tempo, ganharão continuidade e consistência. Acredito que o sublinhado e o texto das memórias, se comparados, corroborariam a intuição de Alceu de Amoroso Lima, para quem o grande passo da conversão em Murilo — tal como está na carta já citada a Laís Correa de Araújo — “foi apenas uma volta à infância”. Continua Alceu: “No caso de Mário de Andrade essa permanência religiosa da infância ficou apenas latente. Em Murilo, ao contrário, foi decisiva e profunda. Indelével”.

Comecemos por uma das páginas sublinhadas de Ismael Nery (p. 240). Ele sintoniza com Joergensen na cidade de Cortona, no momento em que o dinamarquês visita o mosteiro de Celle. Lá, em 1221, São Francisco converte algumas figuras proeminentes, dentre elas Guido Vagnotelli, jovem rico e poderoso, que se dispõe a dar suas posses aos pobres. A conversão de Guido estará retratada no 37º fioretti, que Joergensen lê em Cortona e Ismael sublinha no Rio de Janeiro.

A dupla leitura salienta que Guido recebe o santo e seu companheiro “com grandíssima cortesia”: “tinha abraçado e beijado amigavelmente o santo, e depois lhe havia lavado os pés e acendido um grande fogo e preparado a mesa com muito boas iguarias e, enquanto os dois companheiros comiam, os servia com um rosto cheio de alegria”. Vendo tanta cortesia e afabilidade, São Francisco concebe tal amor que o leva a julgar que o cavaleiro ganhou o direito a entrar para a Ordem. Conclui São Francisco: Guido “é tão grato e reconhecido para com Deus e tão amorável e cortês para com o próximo e os pobres”.

No fioretti, aparece como inevitável o elogio da cortesia por São Francisco: “a cortesia é uma das propriedades de Deus, o qual dá seu sol e sua chuva aos justos e aos injustos por cortesia, e a cortesia é irmã da caridade, a qual extingue o ódio e conserva o amor”.

A passagem sublinhada por Ismael talvez tenha sido, por sua vez, o fio condutor da leitura de Murilo (se a hipótese que levanto for verdadeira, a leitura de Murilo seria posterior à de Ismael). Insisto nessa hipótese porque a cortesia, tal como descrita e tal como expressa no fioretti e comentada por Joergensen, é o valor religioso maior que retém e engloba as qualidades sublinhadas por Murilo e que são indispensáveis para que ele alavanque o movimento da sua própria conversão.

Remeto o interessado à leitura de “Pèlerinages franciscains” e, por isso, apenas enumero, resumindo, os valores franciscanos sublinhados por Murilo no texto.

O direito de ser pobre se fortalece num mundo em que a luta universal tem por objeto a riqueza e numa sociedade em que o valor do homem é julgado pelo ouro que possui. Talvez seja pelos ensinamentos de Santa Clara de Assis, fundadora das Damas Pobres, ou Clarissas, que Giotto tenha figurado a pobreza com a imagem duma mulher. A humildade extrai sua força do amor espiritual. Nos últimos dois séculos o mundo se tornou mais cristão, apesar de ter sido tomado pelas ideias iluministas. Maior se tornou o desejo de realizar o programa social de Jesus Cristo. O espírito franciscano é essencialmente e antes de tudo o espírito de respeito à vida e a tudo que lhe é útil. Exemplo: por deferência, um homem tirava o chapéu quando passava pelo campo de trigo. A tristeza é um vício babilônico: elogio da alegria do espírito, da alegria espiritual. Contra os excessos: os do prazer e os da abstinência. De nada vale distribuir aos pobres sua riqueza sem o sentimento de amor. O amor suporta tudo, crê tudo, espera tudo, aceita tudo. Do ódio santo contra o mal nasce sempre o amor, não o amor dito em belas frases, mas o amor real que ardia no coração de São Francisco. Todos os homens devem ser irmãos. Por fome e por sede, clamar por Deus. Por fome de bondade e sede de santidade. Somos destinados à vida, à luz e ao céu. Verdade e amor. A salvação está na verdade, que se confunde com o amor. “Verdade e amor, nunca me abandonem”.

Silviano Santiago é ensaísta, poeta, professor e romancista, e teve acesso à obra “Pèlerinages franciscains” graças à gentileza da professora Nícea Nogueira, diretora do Museu de Arte Moderna Murilo Mendes (JF), e de Alexandre Faria. O ensaio inédito aqui publicado deverá ser incorporado ao posfácio do livro “Poemas” (1930), de Murilo Mendes, que será lançado pela Editora Cosac Naify no segundo semestre.

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