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Flora Süssekind e a crítica de divulgação

por Miguel Conde

À santificação ou execração da geração de 1970 se sucederiam outras. E mesmo o presente mais imediato passou a ter hagiógrafos à disposição. Não há pré-requisitos unânimes agora, porém. Podem ser privilegiados traços estilísticos, comportamentais, regionais, políticos. Formas diversas de vitimização costumam interessar. Qualquer que seja ela, aliás, o importante é que o crítico se torne o garçon d’honneur de certo autor ou do grupo a que este se acha vinculado. Desde que caiba a este crítico a função de sumo sacerdote desse culto. De guardião de obras já reconhecidas a descobridor de talentos, de editor todo-poderoso a decifrador conclusivo das referências e dos significados mais secretos do texto que estiver em pauta. Mesmo que para isso deva abandonar de vez a crítica, tornando-se o divulgador de um autor individual (vivo ou morto), de uma inteira região, uma tendência, um lugar social, um grupo editorial ou uma faixa geracional ou migratória específica.

A crítica Flora Süssekind já descreveu a polêmica como um "mecanismo autoritário de discussão intelectual", mas entre os intelectuais brasileiros é difícil encontrar algum que se dedique com tanto talento e método a pegar seus pares de guarda baixa. O texto dela no número 20 da revista "Inimigo Rumor", de onde saiu o trecho aí em cima, trata da presença de santos e referências sacras na obra de Paulo Leminski. Nas primeiras cinco páginas, porém, Flora pede licença para demolir o que chama de tendências hagiográficas de nossa crítica cultural.

É um processo hoje tão corriqueiro que o difícil não é diagnosticá-lo, mas perceber como na verdade se trata de uma aberração. Em algum momento, passou a ser normal a substituição da análise pelas mesuras reverenciais nos textos dirigidos a alguns artistas brasileiros. Em especial, observa Flora, àqueles "de vida breve, mortes prematuras, por vezes trágicas", como Chico Science, Cazuza, Jorge Guinle Filho, Glauber Rocha, Ana Cristina César, Cacaso, o próprio Leminski etc. Como ela nota, porém, às vezes a canonização começa já em vida:

As exigências para uma rápida santificação literária têm deixado de lado, nas últimas décadas, a experiência do luto e a lista de autores de classe média mortos antes do tempo. A auréola vem passando para autores cuja pobreza, exclusão social ou vinculação a espaço periférico justifique a priori tal operação. E produza, no mesmo processo, uma certidão pública de reconhecimento do agente intelectual de sua canonização. Mudam os santos, mantém-se, porém, lógica hagiográfica semelhante. E de efeito duplo: a santificação e a "tristeza aguda" de um são garantia de alcance para a voz do outro, do hagiólogo.

O crucial, portanto, é que o processo de santificação confere uma autoridade "papal" ao seu agente - o crítico. Como recompensa pelo empenho, ele é convertido em avalista da obra. Quanta gente por aí não se pretende proprietária dos espólios artísticos alheios? A mitificação das vítimas do destino ou do sistema, especialmente num campo tão sujeito à glamourização pessoal quanto o artístico, é um procedimento-clichê, ao qual parte do público e da imprensa se entregam rotineiramente. Mas quando a crítica faz o mesmo, reivindicando o papel de guardiã do culto, ela perde sua razão de ser.

Para ler a íntegra do texto de Flora Süssekind, clique aqui.

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