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Fragmentos de encontros em 'e a noite roda', de Alexandra Lucas Coelho

 

Por Claudia Nina*


Foto (Foto: Capa do livro 'e a noite roda', de Alexandra Lucas Coelho (Tinta-da-china))

Viagem sensorial, com uma linguagem finíssima, seda pura, é um convite aberto em “e a noite roda” (Tinta-da-China), da jornalista portuguesa Alexandra Lucas Coelho. Autora de várias narrativas de viagem (Afeganistão, México), Alexandra agora põe os pés no romance de estreia com o respaldo de um texto depurado em suas andanças pelo mundo, e um olhar marinado pelo surpreendente. A palavra inaugura caminhos curiosos; o leitor é enlaçado em uma ciranda. A roda não mais se inventa, claro, mas novos giros conduzem uma leitura estimulante, enquanto a história é narrada ao revés. Roteiro nômade, imprevisível, cenário de uma paixão que não pode ser vivida de perto por muito tempo, senão desmancha — “Um amor é sempre a sua circunstância”.

Como a realidade é má ficção, e Alexandra bem sabe disso, a história busca na invenção de um amor a especiaria que falta — Ana e Léon, de Barcelona e Bruxelas, respectivamente, são repórteres que se conhecem e se apaixonam em Jerusalém às vésperas da morte de Arafat. A partir daí, combinam de se encontrar em lugares diversos do Oriente Médio e da Europa de acordo com o itinerário de trabalho e a vontade de cada um. Não chegam a construir uma agenda de vida em comum (ele é casado, pai de três filhos; ela, solteira) porque não conseguem: o amor deles é feito de despedidas e, quando ameaçam iniciar um relacionamento mais regular, um deles desaparece — “As histórias felizes são relâmpagos”.

A distância é disfarçada por ligações ao telefone, mensagens de celular e e-mails — “A única forma de voltar é escrever para que exista”. Idas e vindas de correspondência demarcam o território das ausências povoado apenas de palavras, citações de poemas, juras de amor. Quando não se veem, os amantes sofrem tremendamente e, por ironia, quanto mais se escrevem, menos se encontram. Ambos têm medo de se confrontarem livres um para o outro: “Talvez a nossa história seja o que já existiu, talvez só tenha existido porque não pode existir, é possível que estando juntos nos achássemos distantes. Não queres fazer-me mal e não queres ser desiludido, eu também não, tudo isso é medo” — eis um trecho de uma carta de Ana a Léon.


Histórias sobrepostas 

Foto (Foto: A autora portuguesa Alexandra Lucas Coelho lança seu primeiro romance pela Tinta-da-China / Paula Giolito / 19/01/2012)

Alexandra Lucas Coelho trabalha o lirismo sem nenhum derramamento. Em frases pontuais, a poesia transfigura o cenário da guerra; a literatura vai a lugares onde a reportagem não alcança. Gaza, Jerusalém, Ramallah são paisagens rasgadas, no romance, por um olhar de viés capaz de ver luzes dentro das pastelarias onde os tabuleiros assam bolinhos, a mesa de uma casa forrada de pão, chá e azeitonas, o lusco-fusco de velas em restaurantes de becos, os biscoitos cozidos em volta de um velho fogareiro no lar de parede esburacada. Aos sabores da mesa se unem os demais sentidos: o cheiro dos figos maduros, o frescor da hortelã, o jasmim no auge...A poesia vai ao osso da vida em ruínas que, aos trancos e barrancos, ainda persiste. Neste sentido, é muito mais real do que a mais cruel das realidades.

Nada pode ser verdadeiramente lindo e digno sem alguma dose de sofrimento, assim como um amor não pode ser intenso sem que os amantes não sofram de algum modo quando estão longe e vazios um do outro. “Acordo esmagada, como se o teu olhar tivesse ficado aqui a noite inteira. De repente parece-me impossível estar mais um minuto na mesma cidade que tu e não estar contigo”, queixa-se Ana.

Há várias camadas de história sobrepostas como nas terras antigas (nos corações antigos?): a história recente dos lugares e de vida de cada um dos personagens, o passado de tudo o que os envolve há milênios. Romance-reportagem, romance-romance, narrativa de viagem, tudo isso junto e misturado a uma literatura sofisticada. O tempo do texto transcorre, ano após ano, em um eterno presente e isto confere à leitura um estado de realidade-agora que poderia soar como simples reportagem não fosse o trabalho da liberdade poética.

Há uma mescla saborosa de tons, ora confessional, nos momentos em que Ana parece falar ao pé do ouvido de Léon, ora mais objetivo, quando na tentativa de desenhar os retratos da vida por detrás da guerra interminável. Um trajeto, enfim, de quem escreve florindo desertos. Como Ana, como Alexandra.


*Cláudia Nina é jornalista, autora de "Literatura nos jornais"

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