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Gustave Flaubert por Jean-Paul Sartre

Foto (Foto: Flaubert e Sartre, por Loredano)



Publicado pela primeira vez no Brasil, clássico do filósofo francês sobre o autor de ‘Madame Bovary’ revela afinidades e rivalidades entre o pensador engajado e o romancista que defendia ‘a arte pela arte’

Por Fernando Eichenberg

“Entra-se num morto como quem entra num moinho”, escreveu Jean-Paul Sartre (1905-1980) a propósito do escritor Gustave Flaubert (1821-1880). Durante sete anos, o célebre filósofo mergulhou na vida do autor de “Madame Bovary”, numa obsessão que resultou, entre 1971 e 72, no lançamento da original biografia “O idiota da família”. Com seu Flaubert, Sartre, que já havia escrito sobre Baudelaire (1946), Jean Genet (1952) e Mallarmé (publicado postumamente, em 1986), vai além do estudo crítico e biográfico e projeta uma ousadia intelectual antropológica: a criação de um método analítico capaz de apreender a totalidade de um homem, as condições de sua existência e as possibilidades de sua representação. A ambiciosa obra, inacabada em seus três volumes e cerca de três mil páginas, é agora lançada pela primeira vez em língua portuguesa, em edição brasileira da L&PM, com tradução de Júlia da Rosa Simões.

“O que se pode saber de um homem hoje?”, indaga Sartre, anunciando o tema de seu ensaio sobre o indivíduo como um “universal singular”. Em sua aspiração por uma ciência humana como síntese de “todos os métodos”, o filósofo disseca seu biografado recorrendo ao marxismo, ao existencialismo e à psicanálise. Flaubert é o “idiota da família”, o filho tido como retardado, a criança com dificuldades de aprender a ler e a lidar com as palavras, que se tornará o “criador do romance moderno”, na concepção do próprio biógrafo. Sartre conta na introdução da obra que elegeu o escritor por três razões. Por um “ajuste de contas”, numa antipatia transformada em empatia, admite ele; pela relação do homem com sua criação literária e seu tempo; e pela neurose de Flaubert, que seria a particularização de uma neurose coletiva.

Foto (Foto: Arquivo)

Num jogo de espelhos, entre a afinidade e a rivalidade, Sartre constrói sua “superbiografia” em busca da impossível totalidade do personagem, seu duplo invertido. “Por que Flaubert?”, lhe perguntou o jornal “Le Monde”, em 1964. “Porque ele é o oposto do que eu sou. Temos a necessidade de nos chocar com o que nos contesta. ‘Muitas vezes pensei contra mim mesmo’, escrevi em ‘As palavras’. Essa frase não foi compreendida. Viu-se nela uma confissão de masoquismo. Mas é assim que se deve pensar: rebelar-se contra tudo aquilo que se pode ter inculcado em si”, respondeu.

Acerto de contas com A cultura do século XIX

Para Annie Cohen-Solal, autora de “Sartre, uma biografia” (L&PM), “O idiota da família”, em meio à “idiossincrática” forma de o filósofo administrar sua produção, foi um “enorme livro” que surpreendeu a todos quando lançado na França:

— Ele diz: “Flaubert representa para mim o exato oposto da minha concepção de literatura; é um desengajamento total, a busca de um ideal formal que não é o meu”. Mas acrescenta: “Flaubert começou a me fascinar precisamente porque eu enxergava nele o contrário de mim mesmo”.

Cohen-Solal lembra os grandes trabalhos filosóficos de Sartre, como “O ser e o nada” ou “Crítica da razão dialética”, sempre acompanhados de textos para teatro ilustrativos de seu pensamento. “O idiota da família” é, segundo ela, um “outro modelo”, e também uma forma de Sartre ajustar contas com seu avô materno, Charles Schweitzer — que o educou até aos 11 anos de idade, quando passou a frequentar a escola —, e com uma tradição francesa elitista característica do século XIX:

— Ele quer subverter a tradição da qual se originou, de uma França arcaica contra a qual nunca cessou de lutar. Questiona a família burguesa provincial e também um escritor que não se engajou no momento da Comuna de Paris (a insurreição revolucionária de 1871 na capital francesa). Sartre já o ataca num texto de 1945, publicado na revista “Les temps modernes”, em que diz: “O escritor está sintonizado com sua época, cada palavra tem suas repercussões, cada silêncio também. Considero Flaubert e Goncourt responsáveis pela repressão que se seguiu à Comuna de Paris, por não terem escrito uma só linha para impedi-la”.

Cohen-Solal aponta nesta época uma “agenda bem menos pública” de Sartre (que em 1964 havia recusado o prêmio Nobel de Literatura), sendo sua grande última tomada de posição política o empenho pela instituição do chamado Tribunal Russell, em 1966, em conjunto com filósofo britânico Bertrand Russell, para julgamento de crimes de guerra.

— Nos anos 1970, ele se engaja em duas coisas: em seu Flaubert e na fundação do jornal “Libération”, duas experiências complementares. É interessante notar que ele vai começar seu Flaubert em meados dos anos 1960. Durante as revoltas de Maio de 68, seu interesse é pela Comuna de Paris; ele está em outro século, é algo muito bizarro — lembra ela.

Jean-François Louette, reputado especialista em Sartre da Universidade Sorbonne, reforça a ambivalência do filósofo, ao mesmo tempo surpreso e incomodado em relação ao seu personagem. E ressalta que no final dos anos 1970, perto do término da obra, os jovens amigos maoístas do filósofo, desejosos por um ensaio de forte engajamento político, tentaram dissuadi-lo da publicação.

— Mas Sartre não cede. Flaubert constitui para ele um tipo de desafio. O livro é uma síntese de diferentes opções ideológicas, de seu gosto pela história, pela filosofia, pela crítica literária, de seu interesse pela biografia. São várias razões para que ele não renuncie à obra — observa ele.

Foto (Foto: O escritor francês Gustave Flaubert, autor de 'Madame Bovary' / Reprodução)

O próprio filósofo se reconhece em Flaubert em seu percurso na descoberta da linguagem, e também se sentiu um “idiota da família”, assinala Louette, ao citar a passagem de “As palavras” em que o jovem Sartre conta como leu seguidas vezes o final de “Madame Bovary” sem nada compreender. Assim como Flaubert, que “não conseguia aprender a escrita porque levava muito a sério a linguagem”, Sartre também “se fascinou diante de palavras impenetráveis e opacas”, diz o pesquisador. “O idiota da família” carrega uma forte crítica à burguesia francesa do século XIX, afirma Louette, mas também deflagra um embate com estruturalistas e lacanianos, procurando desmentir a tese de que a linguagem é um sistema que funciona praticamente sozinho.

— Sartre mostra que o grande escritor é aquele que sabe sonhar com as palavras, sem se deixar aprisionar pelo poder da linguagem, mas com uma certa distância do lugar comum, de uma forma um pouco poética — sustenta Louette, ao classificar “O idiota da família” como “um grande exemplo de uma crítica literária audaciosa e inventiva”.

Jean Bourgault, pesquisador do Instituto de Textos e Manuscritos Modernos (Item) e autor de várias obras sobre Sartre, não mede palavras para louvar a primeira edição de “O idiota da família” em língua portuguesa como “um verdadeiro acontecimento”:

— Trata-se de um grande texto de Sartre, onde ele consegue aplicar de forma mais aprofundada o que chama, em “O ser e o nada”, de “psicanálise existencial”. É um livro de filosofia do sentido e da liberdade, e uma grande obra sobre a compreensão do século XIX. É uma leitura de enorme prazer, um livro muitas vezes engraçado, que faz rir, e com um virtuosismo da linguagem, que se lê como um romance.

Na mesma sintonia, e na contramão daqueles que confessaram nunca terem conseguido chegar ao final de “O idiota da família”, Annie Cohen-Solal diz apreciar bastante a singular obra sartriana.

— É um livro de que gosto muito. Moinhos não possuem chave para entrar, e quando Sartre entra no morto Flaubert como num moinho, ele penetra em seu universo livremente, com uma problemática. Isso já é algo extraordinário. Ele se interessou alucinadamente pelo processo de criação literária e política, e passou sua vida a ajustar contas. Esse é o Sartre subversivo, que depois de ter escrito sua autobiografia produz um material considerável sobre o seu exato oposto, o que também é uma maneira de falar de si mesmo.

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