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Inventário do espólio africano


Livro de Henry Louis Gates Jr mostra que construção da igualdade para os afrodescendentes continua


Por Flávia Oliveira

Uma corajosa confissão do etnocentrismo americano abre o livro de Henry Louis Gates Jr. e, de cara, convida o leitor a refletir sobre as próprias lentes com que vê o mundo. Adolescente, o historiador e crítico literário pouco sabia da presença afrodescendente fora da África e dos Estados Unidos. Descobriu com surpresa, no segundo ano na Universidade de Yale, o tamanho da negritude no resto do Novo Mundo. De 1502 a 1866, as colônias latino-americanas receberam 11,2 milhões de africanos, quase todos escravizados; aos EUA, chegaram 450 mil. Já neste século, Gates partiu em visita a seis países (Brasil, Cuba, Haiti, México, Peru e República Dominicana) para pesquisar essa herança. O roteiro rendeu uma série de documentários para TV e o livro “Os negros na América Latina”, de 2011, que agora ganha edição em português.

Foto (Foto: Arquivo)

A obra é quase um diário de viagem. Traz descrições em ordem cronológica de conversas com acadêmicos, personalidades e pessoas comuns, sempre pontuadas pelas impressões de Gates sobre a questão racial em cada nação, além de comparações com os EUA. Quem a ler, em algum trecho, há de se descobrir ignorante como um dia foi o autor. Os povos latino-americanos, por desinteresse, desprezo ou imposição, também desconhecem a contribuição africana na formação dos vizinhos.

Gates conta que, no México, a mistura de raças começou no início da colonização, porque casamentos inter-raciais eram permitidos pela Igreja e os espanhóis já conviviam com os mouros. A discriminação pesou forte quando a escravidão ganhou escala. A regra, hoje, é esconder a origem afro. “Não somos negros. Somos morenos. Todo mundo esconde a vovó preta. É um segredo de família”, disse uma entrevistada.

Na República Dominicana, onde exames mostraram que 85% dos residentes têm antepassados africanos, oito em dez se declaram índios e só 4%, pretos. Negro é como dominicanos classificam a população do vizinho Haiti. O país foi o único da região a ter uma bem-sucedida rebelião de escravos. Eles derrubaram o Império Francês, em 1804, e, no ano seguinte, promulgaram uma Constituição que bania distinções de cor. Todos seriam chamados de negros.

Gates também passou por Cuba, onde a revolução de 1959 instituiu legislação que condenava o racismo. Mas 40 anos depois, o próprio Fidel Castro admitiria, em discurso na ONU, que a marginalização e a discriminação racial não tinham desaparecido. Nas andanças pelo Peru, o escritor se deparou com uma população de ascendência africana que pode chegar a três milhões de habitantes. O país tem um santo negro, São Martinho de Porres, filho de uma escrava alforriada com um espanhol; e festeja o Senhor dos Milagres, uma imagem de Jesus crucificado pintada num muro, no século XVII, por um escravo angolano. No entanto, é famoso no mundo pelo legado inca.

Ao Brasil, o autor dedicou 63 páginas, o maior naco do livro. Para o país vieram 4,8 milhões de africanos, dez vezes mais que para os EUA. Gates passou por Bahia, Minas Gerais, Pernambuco e Rio de Janeiro. Desembarcou enfeitiçado pela lembrança de “Orfeu do carnaval”, filme de Marcel Camus a que assistiu nos anos 1960, e pelas teorias de democracia racial de Gilberto Freyre em “Casa grande e senzala”. Espantou-se com a quantidade de cores (134) que os brasileiros usam para classificar tons de pele e atenuar etnias. Partiu desapontado com a desigualdade evidente na presença minguada de negros nos espaços da elite e da classe média, mas encantado com a influência africana na música, na dança, nas festas, na culinária, na religiosidade.

O livro de Gates não tem conclusão. É obra aberta. Nos seis países — e também nos EUA — a construção da igualdade para os afrodescendentes continua. O inventário não acabou.

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