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Jacques Le Goff: O fim da saga de um herói da História

Foto (Foto: Detalhe do afresco 'Efeitos do bom governo sobre a cidade', de Ambrogio Lorenzetti, pintado entre 1337 e 1339 / Reprodução)



Medievalista tinha espírito democrático e visão crítica do presente e do passado

Por Regina Schöpke*

Afigura do herói, embora hoje bastante banalizada, representou desde sempre um ideal de força, coragem e honra, ou seja, um ideal de virtude a ser seguido pelo campo social. Assim pelo menos pensavam os gregos antigos, para os quais a ideia de virtude (areté) tinha o sentido de excelência, que tanto podia ser física quanto ética, embora o herói nunca fosse apenas um homem forte no sentido físico do termo. Para ser um herói, entre os helenos, era preciso ser forte, sobretudo no sentido ético. Um herói era, acima de tudo, um homem valoroso, justo, honrado, leal, que vivia e morria pelos seus ideais. E não se trata aqui, apesar das aparências, de uma busca vazia da perfeição (algo que só poderia mesmo frustrar os homens reais), mas de colocar como meta a busca de uma fidelidade íntima, de uma consonância consigo mesmo. Se o herói é aquele que dá o exemplo na própria carne; se é ele que se dá como exemplo, então existem muitos outros heróis menos celebrados, mas tão essenciais para o coletivo quanto os personagens (sempre mais ideais do que reais) de Aquiles e Lancelot. E aqui citamos um, que não é guerreiro nem cavaleiro, ou até é, no âmbito do espírito: o grande historiador e medievalista Jacques Le Goff.

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Sim, Le Goff, que pertencia à terceira geração de historiadores da dita escola dos “Annales” e que nos deixou agora, aos 90 anos, talvez não se visse assim. Mas seu fôlego inesgotável (era quase um Sísifo) para os estudos e para a pesquisa histórica, aliado ao seu espírito democrático e à sua visão crítica do nosso mundo, e também do nosso passado (do nosso mundo primeiro, e diremos porquê) faz dele um exemplo de grandeza intelectual e humana. É que, com Marc Bloch, ele partilhava da ideia de que a História serve para nos fazer conhecer o presente. Não se trata de uma busca metafísica das origens, mas da noção vigorosa de que é o presente que exige esse mergulho no passado. Aliás, apesar de seu preconceito (ele próprio termina por confessar isso) contra a filosofia, ele viu em Foucault algo de profundamente original, exatamente porque Foucault, buscando uma espécie de “ontologia da atualidade”, acabou, mesmo sendo um filósofo, revolucionando os estudos da História.

Seja como for, é fato que o grande medievalista, que lutou obstinadamente contra a ideia de que a Idade Média foi simplesmente um lugar de trevas, não vê mesmo importância no estudo da filosofia para o ofício do historiador, mas isso não muda o fato de que seu pensamento é profundamente atravessado pela filosofia, sobretudo, quando discorre sobre o próprio método histórico. Le Goff diz reconhecer que a História é feita, sobretudo, de interpretações. Mas, segundo ele, “se o historiador não está animado pelo desejo da verdade como horizonte de sua pesquisa e como virtude moral, a porta fica aberta para todos os excessos”. Mais filosofia do que isso é impossível.

Criações da época vivas e atuantes

No mais, pode-se dizer que uma querela sutil acabou se estabelecendo entre Le Goff e outro gigante da História, o helenista Jean-Pierre Vernant (que foi, aliás, de enorme importância para o pensamento do próprio Le Goff). É que, para Vernant, “os gregos inventaram tudo” ou, mais especificamente, “inventaram o Ocidente”, sobretudo no que diz respeito aos ideais de liberdade, igualdade e fraternidade (que teriam, para Vernant, emergido, primeiramente, como aspirações do espírito democrático e filosófico grego). Le Goff, no entanto, pensa bem diferente e foi aprimorando cada vez mais a ideia de que é a Idade Média que está na base do mundo moderno e contemporâneo. Por fim, já bem tardiamente, ele vai ainda mais longe e afirma que a Idade Média criou a Europa, e que a própria Idade Média dura até os nossos dias. Afinal, para Le Goff, era mais do que claro que as criações nascidas naquele mundo continuavam vivas e atuantes entre nós: o intelectual, as universidades, as cidades, o nascente Estado moderno, a busca pela emancipação das mulheres etc.

É fato que estamos diante de um grande apaixonado. Talvez Le Goff ame mais a figura do cavaleiro do que a do guerreiro da Ilíada, mas é certo que, como Vernant, ele ama, mais que tudo, a esfera do imaginário, dos mitos e das lendas. Le Goff, sobre isso, é enfático: “a História se faz com homens de carne e osso, com seus sonhos, crenças e necessidades cotidianas”. É pela imaginação coletiva que se conhece melhor um povo, diz ele. Não há como ser puramente objetivo, arremata o genial medievalista. A História suscita paixões, até porque ela se desenrola no tempo da vida, e se escreve na existência mesma dos seus criadores. É impossível não se apaixonar pelos homens do passado, que seremos nós no futuro. Mas é igualmente impossível não se apaixonar por ele, o nobre cavaleiro que defendeu a História com uma espada cortante, sem tremer, sem esmorecer, do início ao fim. A saga de Le Goff pode ter acabado, mas seus feitos o elevaram, com justiça, à esfera seleta dos imortais.

*Regina Schöpke é filósofa e medievalista, autora de “Matéria em movimento” e “Dicionário filosófico” e faz pós-doutorado na PUC-PR

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