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Livros mostram relação entre futebol e questão racial no Brasil

Foto (Foto: Banana se transformou em símbolo do racismo nos estádios do Brasil e da Europa/AFP)



Copa do Mundo de 1938 e trajetória de Pelé são analisadas por historiador e antropóloga

Por Leonardo Cazes

Aos 30 minutos do segundo tempo do jogo contra o Villarreal, no dia 27 de abril, o lateral-direito do Barcelona e da seleção brasileira Daniel Alves pegou e comeu uma banana atirada por um torcedor do time adversário antes de cobrar um escanteio. Em março, durante o jogo entre Esportivo e Veranópolis, em Bento Gonçalves, pelo Campeonato Gaúcho, torcedores gritaram insultos racistas contra o juiz Márcio Chagas e, depois da partida, jogaram bananas no seu carro. Os atos motivaram campanhas antirracistas em campo e na internet, e colocaram em debate o preconceito no futebol. Contudo, a relação entre o esporte e a questão racial não é nova. Já estava presente nas primeiras décadas do século passado e na gênese da ideia de “futebol arte”.

Dois novos livros abordam o tema de maneiras bem diferentes: “Pelé e o complexo de vira-latas: discursos sobre raça e modernidade no Brasil”, da antropóloga e professora da Universidade Federal Fluminense (UFF) Ana Paula da Silva, e “Bola na rede e o povo nas ruas! O Brasil na Copa de 1938”, do historiador Felipe Morelli Machado. As duas obras — que serão lançadas nos dias 30 de maio e 6 de junho, respectivamente, com debates na Travessa do Shopping Leblon às 19h — fazem parte de uma série da Editora da UFF (EdUFF) de pesquisas sobre o futebol.

A cor da seleção

Ana Paula explica que, na década de 1930, quando o futebol se tornou um elemento fundamental da identidade nacional, ele virou também vitrine para uma discussão sobre o projeto de país em termos raciais. Na época, a influência do racismo científico, surgido no fim do século XIX, era muito forte. Tratava-se de uma ideologia construída pela própria ciência, que tornaria possível classificar indivíduos a partir das suas características físicas. Esse pensamento via o Brasil como um país “degenerado” por sua população ser majoritariamente negra e mestiça. Com a popularização do futebol, instaurou-se um conflito sobre quem poderia vestir a camisa da seleção brasileira.

— A questão racial se torna um problema para o futebol quando o Brasil começa a participar de torneios internacionais, pois suscita um debate relativo a quem pode representar o país. Era uma disputa entre aqueles que defendiam que só jogassem atletas da elite, muito por conta dessa noção de que éramos um país degenerado, e outra corrente que acreditava que o Brasil tinha de se assumir do jeito que era. Gilberto Freyre, Mario Filho e Nelson Rodrigues foram grandes porta-vozes dessa visão, de que o país tinha que assumir a sua mestiçagem numa chave positiva — afirma a antropóloga.

No processo de popularização do esporte no Brasil, a Copa do Mundo de 1938, disputada na França, teve um papel fundamental. A campanha brasileira, da preparação à consagração de Leônidas da Silva, o “Diamante Negro”, e a festa do povo foram dissecadas por Felipe Morelli Machado. O torneio marcou uma aproximação importante entre governo e esporte. As ligações eram até pessoais: o presidente da Confederação Brasileira de Desportos (CBD), Luiz Aranha, era irmão do influente ministro das Relações Exteriores de Getúlio Vargas, Oswaldo Aranha. O historiador, entretanto, destaca que os próprios dirigentes esportivos e homens de imprensa buscaram essa aproximação. O Estado Novo respondeu com respaldo político e financeiro, custeando passagem e hospedagem de 20 membros da delegação.

Na obra, com base nos textos dos cronistas Thomaz Mazzoni, do jornal “A Gazeta”, e Mario Filho, do “Jornal dos Sports” — Machado mostra o fortalecimento do discurso do “futebol arte”, que valorizava o talento individual dos jogadores brasileiros, depois da conquista do terceiro lugar. No entanto, antes da Copa, o coro da imprensa era por mais disciplina, alinhada com a ideologia do Estado Novo.

— A seleção brasileira deveria representar o novo Brasil, uma nação disciplinada e ordeira. Esse discurso só vigora até o início do torneio. Na medida em que o comportamento dos jogadores em campo (Domingos da Guia cometeu dois pênaltis nos dois primeiros jogos) e da torcida nas ruas entra em conflito com essas ideias, o discurso da imprensa é obrigado a se adequar à realidade— afirma o historiador.

A partir daí, as características do estilo de jogo brasileiro passam a ser atribuídas à mestiçagem do povo. O historiador conta que Gilberto Freyre, em artigos e entrevistas no “Diário de Pernambuco”, apontou o futebol como a legítima expressão da nossa formação social, desenvolvendo ideias esboçadas em “Sobrados e mocambos”. Essa visão seria consolidada por Mario Filho no livro clássico “Negro no futebol brasileiro”, lançado em 1947.

— Para Freyre, em 1938 havíamos deixado de nos preocupar em forjar uma imagem no exterior de uma república de arianos ao assumirmos uma seleção de maioria negra. O futebol do improviso, da ginga, da malandragem, da liberdade seria característica do nosso “mulatismo”. Para ele, o esporte tinha função de polimento dos elementos da cultura brasileira. A capoeiragem, o samba, o cangaço encontrariam no futebol o formato socialmente aceito para a sua expressão.

Pelé, símbolo de um novo país

Ana Paula ressalta que a valorização da mestiçagem alimentava um perigoso discurso eugenista, pois seria um caminho para “purificar” a raça. Além disso, ela argumenta que a designação do “futebol arte” era fortemente “racializada”.

— Essa ideia trazia a noção de que a mistura de raças brasileira produzia um tipo de jogo diferenciado, exclusivo, que não poderia ser reproduzido por jogadores que não fossem brasileiros. Por outro lado, o “futebol arte” estava carregado de significados negativos, de um Brasil atrasado, não ocidental, não civilizado, não racional.

Ana Paula, que no seu livro explora a fundo a ascensão de Pelé na Copa do Mundo de 1958, na Suécia, mostra como o discurso sobre a questão racial e a identidade nacional, projetada na seleção, sofreram uma grande mudança em relação aos anos 1930. O país já tentava se afastar de uma imagem folclorizada para se apresentar ao mundo como uma nação em desenvolvimento acelerado, urbana e industrializada.

Segundo a antropóloga, Pelé, apesar da pouca idade, personifica os valores dos anos de Juscelino Kubitschek, o que pavimentou o caminho para se tornar a grande estrela midiática e ser o brasileiro mais conhecido no mundo.

— Parte da sociologia dos anos 1950 afirmava que as desigualdades entre negros e brancos no país seriam superadas quando o Brasil se industrializasse e incorporasse o ethos da modernidade no trabalho. Pelé representou muito bem esse papel. Ele era de fato urbano, nascido em Bauru, uma cidade inserida no modelo industrial paulista, vindo de uma família onde o trabalho era muito valorizado — afirma a autora. — Hoje, quando ele minimiza o que aconteceu com o Daniel Alves e diz que não existe racismo no Brasil, está reverberando valores da sua época. Ele não é louco.

Os casos recentes de racismo contra brasileiros que provocaram comoção ocorreram todos no exterior — além de Daniel Alves, o meia Tinga, do Cruzeiro, foi ofendido em jogo da Copa Libertadores da América, no Peru, em fevereiro. A antropóloga utiliza um ditado popular para explicar: “não se fala de corda em casa de enforcado”. Ana Paula elogia a atitude de Daniel Alves, mas lamenta que o gesto não tenha provocado um debate mais profundo.

— Ele teve uma ideia genial na hora. O que eu acho problemático é que, na apropriação do que aconteceu, não houve uma discussão sobre a questão. A repercussão girou em torno dessa visão nossa de que o racismo é uma coisa do mal, reproduzida por gente do mal. “Mas eu não sou racista! O problema não é meu, coloco foto comendo banana no Facebook”.

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