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Meu último texto de cinema, por Felipe Bragança

Cartas de despedida deveriam ser curtas para que ao longo da escrita o autor não começasse por demais a se desdobrar sobre o que escreveu. Escrevi minha primeira crítica de cinema em 2000, no finado formato cooperativo da “Contracampo” no qual Ruy Gardnier e Eduardo Valente eram editores, quando havia uma agenda clara a ser cobrada, cumprida e almejada por uma certa juventude carioca de cinefilia: a) o fato de que o cinema brasileiro dito de arte ou autoral estava praticamente alijado ou alienado daquilo que havia de mais pujante na cinematografia mundial na virada do século; b) a ideia de que a partir dessa observação era preciso saber resgatar alguns fios de tradições brasileiras cinematográficas que haviam se perdido e que poderiam ser de grande valia para o rejuvenescimento dos filmes feitos aqui; e c) com o surgimento de filmes que conseguissem desfazer o nó da viuvez do Cinema Novo mesclada à absorção de vanguardas internacionais contemporâneas, o cinema feito no Brasil seria, naquele futuro distante, um objeto mais pujante… ou, no mínimo, redivivo.

Fora do Brasil, Walter Salles e Fernando Meirelles apareciam como os dois únicos do cinema brasileiro de ficção a conseguir construir uma aura em torno de seus filmes para protagonizar essa cinematografia. O nosso desejo, desses jovens diretores e críticos cariocas, era que entre o humanismo polido de Salles e o espetáculo habilidoso de Meirelles pudesse emergir outra forma, uma derivação mais arriscada e afiada de cinema que nos ampliasse esteticamente o horizonte. Que entre um cinema-de-arte bem composto e um cinema de explotation do imaginário urbano outras formas de novidades cinematográficas pudessem emergir.

Nesse panorama pouco animador (com algumas novidades charmosas como “Um Céu de Estrelas” ou “Baile Perfumado”, por exemplo), a alegria que “Santo Forte” e “Madame Satã” geraram em boa parte da redação de “Contracampo”, em 2002, foi histórica por mostrar o quão sedentos estávamos por filmes que apresentassem perspectivas mínimas do que poderiam ser antídotos dessa certa “defasagem” do cinema narrativo e da dramaturgia cinematográfica brasileira em relação aos aspectos mais brilhantes que enxergávamos em filmes daqueles primeiros anos de século XXI: fluxo, intensidade, fantasmagoria e uma nova ética da imagem acima da moral narrativa.

Naquele momento, Kiarostami, Hou, Tsai e Oliveira eram nomes obrigatórios de encantamento e havia uma inegável frustração cinéfila e política ao não vermos aquelas questões cênicas, de luz, de tempo e de montagem ecoarem ou serem digeridas pelos longas realizados no Brasil. Fora eventuais filmes dirigidos por nomes marcados por estilos muito particulares e pujantes, ainda que “cristalizados” em décadas anteriores (penso em Candeias, Sganzerla, Bressane, Reichenbach…), havia a sensação de que o cinema autoral/de invenção brasileiro era tão rarefeito no panorama dos longa-metragens que até mesmo um projeto de cinema popular redivivo se fazia impossível. Seria muito difícil a reconstrução criativa de um panorama de novas formas de cinema popular, de gênero, no Brasil, sem que houvesse um lugar de autores, pensadores, projetos de cinema menos dependentes do formato industrial e mais conectados ao que de mais vivaz se fazia no cinema internacionalmente.

Nessa época, era comum em nossas conversas, já nos momentos de crise editorial da “Contracampo”, a ideia de que talvez nos curta-metragens de 2000 a 2004 começasse a aparecer algo que, se ainda não era uma “reinvenção” dos filmes brasileiros, era no mínimo uma renovação de perspectivas. Mesmo que muitos desses curtas agissem como dublês de autoria, como caraoquês de cinema, imitação e tentativa de decalque de ícones internacionais e do cinema brasileiro autoral dos anos 70, havia uma movimentação nova no Rio, São Paulo, Ceará, Minas, Rio Grande do Sul e Pernambuco.

Quando em 2006 (o ano do racha da “Contracampo” e surgimento da “Cinética”) “O Céu de Suely” apareceu no panorama brasileiro, percebemos que estávamos diante de um dos filmes mais individualmente sintomáticos e potencialmente influentes em mais de uma década de cinema nacional: pelos elogios que ele colecionou no panorama brasileiro de longas justamente por fazer opção pela pouca luz, por uma dramaturgia elíptica e por uma temporalidade rarefeita que eram quase alienígenas nesse imaginário de cinema-de-arte “oficial” brasileiro (e que há muito identificávamos no panorama internacional). Produzido por uma produtora renomada como a VideoFilmes e com patrocínios estatais de porte, seu sucesso gerou nos jovens cineastas e críticos uma dupla sensação: uma, positiva, de que havia ali uma seara de arejamento dos longas feitos no Brasil que se abria para um lugar contemporâneo possível; outra, a de que esse festejo poderia causar uma onda de reiterações como se uma nova fórmula tivesse sido testada e aprovada pelo imaginário dos editais, produtores e festivais brasileiros — algo expresso e exposto ao limite na fragilidade estética e eficiência de projeto do “À deriva” de Heithor Dhalia, em 2009 (o que acaba nos sendo muito útil como sintoma, aliás).

De qualquer forma, desde 2006, e nos últimos cinco anos, uma verdadeira marcha de acontecimentos vem ecoando aquelas brechas ainda sem uma síntese. Aquela velha agenda da “renovação de linguagem” do cinema brasileiro começou a sair da teoria da cinefilia alternativa e se expressar em filmes, seja com o apuramento de alguns nomes já estreados na virada do século, seja especialmente com o destaque que o curta e o longa-metragem cooperativo e de pequenas produtoras começaram a ganhar no panorama internacional. Festivais como Cannes, Rotterdam, Locarno e Veneza vêm selecionando filmes semi-artesanais e de pequeno aporte financeiro dirigidos por novos diretores oriundos de escolas de cinema e ou da crítica independente — nomes como Marina Meliande (que co-dirigiu comigo meus dois longas), Bruno Safadi, Marco Dutra, Juliana Rojas, Esmir Filho, Helvécio Marins, Kléber Mendonça, e uma lista de cerca de uma dezena de nomes que vai dos coletivos de Minas Gerais aos coletivos do Ceará passando por Rio e São Paulo e Recife, principalmente.

Nesses últimos quatro anos, a despeito do que possam pensar alguns críticos mais nostálgicos, não foi no seio da crítica independente que as novidades apareceram. Pela primeira vez em vinte anos talvez a crítica brasileira — a independente e a de grandes meios — tenha que se ver diante do desafio de não mais propor agendas geracionais no deserto, mas descer para acompanhar e comentar e destrinchar os filmes e suas interrelações geracionais sem a obsessiva fixação pelo “cinema contemporâneo” internacional como único oásis no horizonte, ou nos anos 1970 como nosso maio de 1968. Uma agenda nova, um entendimento mais complexo do fluxo no cinema contemporâneo brasileiro e seu diálogo com a crítica, um desejo de desafio aos gêneros de forma irônica e ardilosa, de fragmentação e digestão de questões do documentário e de personagens pós-Coutinho, do processo criativo que encontra brechas para fugir da formula “industrial” e de equipes infladas — essa é a agenda de 2011.

Hoje estamos no meio de um nutritivo esfacelamento da nostalgia da História (do cinema brasileiro) e os filmes de alguns novos diretores que chegarão às salas de exibição nos próximos anos têm refletido isso na forma como expressam em suas superfícies a vontade latente de explodir os limites da boa arte e do cinema artesanal de onde emergem. Através de uma aproximação esfomeada sobre clichês, gêneros, estratégias e trilhos misturados no imaginário audiovisual que os rodeia, estamos diante de um processo de longa transformação, de reinvenção do cinema brasileiro — ainda que não se dê de maneira homogênea entre os diferentes realizadores(ou críticos) dessa “geração”.

Uma vez flutuando nesse “lugar contemporâneo” e de olhos abertos, lugar que se conquistou com muita cinefilia e reflexão e trabalho, quais armas temos para derivar e explodir com ele, por dentro dele, para nos manter em movimento? Filmes (e esses dez anos trouxeram eles mais à tona e não tanto os “projetos” e a velha “diversidade”) não são uma plantação de hortaliças das quais recolhemos os mais bem acabados em ser-hortaliças e alimentar a fome que a eles ditamos matar (seja a fome do mercado eficiente e brutamontes, seja a da crítica com a casa nas nuvens e luneta no suvaco que alguns praticam). Filmes, amigos, são uns monstros maravilhosos. E o ser-monstro é por si só uma não-função, uma não-destreza. Esses diretores de cinema apaixonados por cinema (e seus colaboradores), são esses tipos que ficam alimentando os ditos, e tentam dar a eles a melhor forma de se mostrarem em seu esplendor para que das entrelinhas do erro possam vir a beleza e o assombro. Um cineasta não é um autor, nem um artesão, nem tem o glamour que se espera dele — um cineasta é só um tipo que fica feliz assim: sem teto e sem segurança e sem necessidade de ser de fácil deglutição para suprir uma wishlist alheia (e que sabe que trairia o próprio espectador se assim o fizesse). Porque eu aprendi dos meus 20 a meus exatos 30 anos que filmes são um artesanato diário e coletivo, mas que CINEMA é um pouco esse prazer no vazio. Feito o João César Monteiro (cineasta português) mexendo a bacia no Pólo Norte… pra lá… e pra cá, no vazio. Olhem.

FELIPE BRAGANÇA é cineasta com longas-metragens apresentados em Cannes, Locarno e Rotterdam

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