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O paradoxal e polifônico Tolstói

Foto (Foto: Pintura retrata Tolstói arando o campo na propriedade dos seus antepassados na Rússia / Reprodução)



Biografias dissecam e analisam, de forma complementar, a complexa e rica trajetória de um dos maiores escritores de todos os tempos

Por Sonia Branco*

“Tudo está bem, enquanto Liev Tolstói está vivo... com sua vida, ele alimenta e dá de beber ao seu país, ao seu povo... Quando Tolstói caminha, é o sol que se move. Mas se o sol se puser, se Tolstói morrer... o que virá?” A imagem solar do grande escritor, decantada pelo poeta Blok em 1908 e reiterada tantas vezes, não é fácil de ser compreendida quando não se conhece a extensão da obra tolstoiana e o impacto que ela provocou na sociedade russa, não só no âmbito literário, mas também nas discussões filosóficas e práticas da vida. Embora os trabalhos literários do escritor permitam entrever muitas de suas buscas pessoais, para atingir um entendimento mais amplo do significado de Tolstói é necessário que se tenha em mente os diferentes papéis que ele desempenhou ao longo da vida, resultado de constantes e obsessivas reflexões a respeito de questões cruciais tais como educação, religião, ciência, guerra, política, arte etc. No entanto, enfrentar o vastíssimo legado tolstoiano, que contabiliza cerca de dois milhões e meio de manuscritos, não é tarefa fácil.

Em sua diversidade, os materiais incluem, além das obras literárias, cartilhas e contos para alfabetização de crianças camponesas; propostas pedagógicas de âmbito nacional; estudos críticos sobre textos religiosos e traduções diretas dos Evangelhos; uma extensíssima correspondência com familiares, amigos e personalidades russas e estrangeiras; manifestos contra a fome, contra a guerra e outros escritos; e, finalmente, os diários do escritor — que manteve dos 17 aos 82 anos. Não houve instância social que Tolstói não tivesse abarcado, questionado, e para a qual não houvesse apresentado propostas. E todo esse movimento e reflexões suscitaram nele, ao final da vida, uma grande aversão por qualquer ideia de Estado, de progresso e de violência.

Enfrentando recentemente esse desafio, a pesquisadora inglesa Rosamund Bartlett e o jornalista e pesquisador russo Pável Bassínski produziram duas excelentes biografias lançadas no Brasil, respectivamente: “Tolstói, a biografia”; e “Tolstói, a fuga do Paraíso” — esta, vencedora do maior prêmio literário da Rússia.

Foi relevante para os biógrafos a disponibilização de uma série de arquivos de Tolstói censurados até os anos 1990, uma vez que o acesso a esses “novos” documentos lança luz a antigas dúvidas e polêmicas e contribui sobremaneira para que os novos trabalhos possam corrigir erros de interpretação ou julgamentos anteriores.
Em sua introdução, Bartlet assevera que “a maior tarefa com que se depara um biógrafo de Tolstói é o desafio de compreender um homem que foi verdadeiramente sobre-humano”, e confessa que “embora as fontes sobre os primeiros anos de vida de Tolstói sejam escassas, o que eventualmente obriga o pesquisador a confiar nas memórias por vezes erráticas e incompletas do escritor, compiladas já na velhice, a abundância de fontes acerca dos últimos anos cria problemas de outra ordem.”

Embora as duas biografias citadas sejam muito diferentes entre si, elas têm em comum a tentativa de compreender os humanos paradoxos do escritor. Bartlett vê nas atitudes de Tolstói a origem de sua fama controversa de ativista ou anarquista, de pacifista ou sectário. Bassínski prefere observar os paradoxos como elementos da vida que, a exemplo de um “sistema de vasos sanguíneos”, penetram as obras do escritor e deles novamente emergem para a realidade, não delimitando espaços entre arte e realidade. São definições que já indicam o caminho que cada biógrafo traçou para si.

Incompreensível para sempre

Em sua biografia, Bartlett entrelaça o percurso pessoal e literário do escritor ao cenário histórico da Rússia, em rápida transformação a partir de meados do século XIX. Respeitando a cronologia dos fatos, a autora produz um texto digno de um bom romance. O início da história acontece na terra ancestral de Iásnaia Poliána, entre mitos, relíquias e culto aos antepassados das famílias Volkónski e Tolstói, que se tornaram fonte de inspiração para os grandes romances do escritor. Da infância, vem a mais cara recordação de Tolstói: o irmão mais velho lhe declarou certa vez que o segredo da felicidade humana estava escrito em um graveto verde enterrado numa ravina do bosque, perto de casa, e que quando o graveto fosse encontrado e o segredo revelado, então não haveria mais miséria nem ódio no mundo. Tal ideia sempre esteve ao alcance do olhar do escritor, presente em suas obras e na orientação que deu à sua vida. Com relação ao desenvolvimento de Tolstói como artista, Bartlett considera os diários como a “casa das máquinas da sua escrita”, por terem sido um notável espaço de experimentações e intensa autoanálise que culminariam na elaboração das suas primeiras obras ficcionais.

Foto (Foto: Arquivo)

O escritor enfrentou até a vida adulta uma longa batalha entre o ideal de uma vida de pureza a lhe exigir sacrifícios e abnegação, e a decisão de desfrutar, no presente, de uma vida social hedonista, como a dos jovens nobres de sua geração. Essa experiência está amplamente representada em vários dos seus personagens. A futura inclinação ao ascetismo, somada à leitura das obras de Rousseau, seu filósofo preferido, levará Tolstói a condenar a civilização e a se lançar em busca da “verdadeira natureza humana”. Com o despertar da consciência social, vieram turbulentas mudanças nas ideias políticas, filosóficas e religiosas do escritor, que o levarão mais tarde a renunciar aos seus direitos aristocráticos, a doar as suas terras aos camponeses e a abrir mão dos seus direitos autorais.


Nos últimos vinte anos da vida de Tolstói, aglomeravam-se ao seu redor milhares de “tolstoístas” — pessoas que vinham dos quatro cantos do mundo por motivos diversos, muitas das quais comungavam da sua crença na resistência não violenta (que inspirou Gandhi), no ascetismo, no abandono dos bens materiais e no fim da propriedade privada, das instituições em geral e do Estado. Em virtude de sua fama, Tolstói usufruiu de uma liberdade sem precedentes na Rússia. Além de expressar abertamente as suas opiniões, era o único que se permitia falar francamente ao czar sobre o fracasso do soberano no papel de líder da nação. Tal impunidade e o complexo percurso tiveram, no entanto, um alto custo para as relações familiares. Bartlett nos dá uma preciosa contribuição quando, ao final, descreve o incômodo legado deixado por Tolstói para a Rússia pós-revolucionária e especialmente para a era soviética. A edição brasileira tem ainda o mérito de mostrar uma inédita “Bibliografia de Tolstói no Brasil”, importante levantamento feito por Denise Bottman sobre as publicações do autor no país.

De outra natureza é o caminho trilhado por Pavel Bassínski. Ao invés de situar a trajetória de Tolstói no cenário histórico, ele opta por uma viagem subjetiva em que a vida do escritor vai sendo reconstituída, sobretudo a partir do confronto entre correspondência e diários, não apenas do escritor, mas de sua mulher, filhos, e contemporâneos. O foco central da narrativa é a tentativa de compreender as razões do último ato de Tolstói: a “fuga” de Iásnaia Poliána e a morte na estação ferroviária de Astápovo. A narrativa reconstrói os dez dias finais da vida do escritor. No entanto, cada capítulo tem sua própria história e penetra do seu jeito na vastidão das memórias, de forma a reconstruir a trajetória de Tolstói. Ocorre, então, uma espécie de circularidade na narrativa, em que fatos já invocados reaparecem sob nova luz todas as vezes que se fazem necessários. Nada se esgota; as possibilidades são discutidas sob perspectivas diversas.

Elena Vássina afirma em sua introdução que essa obra “integra pontos de vista diferentes e às vezes opostos, compondo uma polifonia de vozes”. Bassínski não fecha nenhuma questão: recusa a identificação fácil de Tolstói com os arquétipos do imaginário popular, tais como “o profeta”, “o peregrino”, “o tolo santo” etc, que aprisionariam o escritor em definições que não dão conta da sua complexidade humana — e termina com uma inconclusão tirada dos diários de Sófia Andrêievna, mulher de Tolstói: “O que aconteceu é incompreensível e ficará incompreensível para sempre”.

Como não é objetivo de Bassínski explicar o contexto histórico e as obras de Tolstói, as duas biografias terminam por se complementar, já que as informações adquiridas através da obra de Bartlett dão condições ao leigo de um melhor aproveitamento da outra obra.

Quanto às traduções, merece referência a do inglês, embora com restrições às transliterações e acentuações dos nomes russos, além de falhas na digitação de datas. A tradução do russo peca em alguns momentos na busca de uma impossível fidelidade do português. No entanto, são detalhes que não interferem na compreensão dos textos.

*Sonia Branco é professora de literatura russa da Faculdade de Letras UFRJ e tradutora de “Contos de Sebastopol” e “Os cossacos”, de Tolstói

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