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Resenha de 'O retorno do real'

Marco de uma época, livro do crítico americano Hal Foster discute legado do pop e sua relação com diversas formas do realismo

Por Karl Erik Schøllhammer

Foto (Foto: Arquivo)

Lançado em 1996, o livro “O retorno do real”, do historiador e crítico de arte americano Hal Foster, finalmente sai em português, com tradução elegante de Célia Euvaldo. Em sua época, o livro de Foster, um dos editores da prestigiosa revista de arte “October” e professor da Universidade de Princeton, foi muito importante para as discussões das principais tendências das artes plásticas e da estética no final do século XX. Podemos hoje apreciar sua contribuição principalmente pela avaliação aprofundada dos movimentos artísticos, que a partir da década de 1960 retomam procedimentos da vanguarda modernista do início de século.

O foco temporal cobre praticamente as últimas quatro décadas do século passado, o recorte é definido pela contribuição americana em diálogo com a tradição europeia e interpretado à luz da teoria crítica da escola de Frankfurt, partindo sobretudo da obra de Walter Benjamin. Os ensaios são atravessados pelo neomarxismo de Fredric Jameson e pelas referências pontuais ao pós-estruturalismo francês de Lacan e Derrida, com especial menção aos seus antecedentes em Mauss, Leiris e Bataille. O resultado é um coquetel conceitual que até hoje permeia o pensamento dos principais membros do grupo de “October” como Rosalind Krauss, Denis Hollier, Jonathan Crary, Yve-Alain Bois entre outros.

Relações anacrônicas

Vejo o valor e a atualidade do livro em dois pontos: primeiro por ser uma releitura dos momentos cruciais da neovanguarda artística que, para o leitor brasileiro, a meu ver, ganha mais interesse quando possibilita pensar o legado da arte pop e sua relação com diversas formas do realismo. Segundo, pelas referências teóricas que abrem uma discussão de fundamento sobre a própria noção de “história” implícita nas práticas atuais da história de arte. Esses dois pontos são intimamente interligados à ambição geral de superar a abordagem estéril da história da arte tradicional e adquirir uma compreensão holística das principais tendências da cultura e das artes ocidentais do século XX em sua sensível ressonância com as teorias críticas das humanidades.

Assim, é a própria historiografia que está no cerne da organização do livro. Hoje, é possível perceber como Hal Foster abriu um caminho de saída das antinomias da pós-modernidade e preparou o campo para a visão histórica do contemporâneo, com ampla aceitação das complexas relações anacrônicas que caracterizam nosso presente. Por exemplo, na discussão do conceito de repetição que Foster aprofunda para considerar a ideia de um retorno da vanguarda histórica na neovanguarda do pós-guerra. Ao criticar o estudo clássico de Peter Bürger — “Teoria da Vanguarda”, no qual a neovanguarda é considerada um paralelo patético e oportunista da vanguarda histórica — Bürger ornamenta seu argumento citando Marx: “A história se repete, a primeira vez como tragédia e a segunda como farsa”. A alternativa apresentada por Foster é uma figura paradoxal do tempo e permite reconhecer que, quando a “vanguarda recua ao passado, ela também retorna ao futuro, reposicionada pela arte inovadora no presente”. Essa estranha noção de temporalidade é apropriada livremente das interpretações que Jacques Lacan e Laplanche fazem do modelo temporal usado por Freud em sua explanação do trauma. O sistema psíquico não está preparado para absorver o trauma cujo sintoma repetido serve de preparo para seu reconhecimento posterior.

Com este paralelo, Foster sugere um modelo histórico em que os eventos históricos só serão reconhecidos a posteriori numa ação diferida (Nachträglichkeit), que recodifica o que no primeiro momento apenas foi registrado de modo bruto: “a vanguarda histórica e a neovanguarda são constituídas de maneira semelhante, como um processo contínuo de protensão e retenção, uma complexa alternância de futuros antecipados e passados reconstruídos — em suma, num efeito a posteriori que descarta qualquer esquema simples de antes e depois, causa e efeito, origem e repetição”.

Alternativas às interpretações engessadas

De modo simplificado, a ideia de Foster é que realizações, para apenas dar um dos exemplos analisados, do dadá nova-iorquino de 1917 (o urinol de Duchamp) e do construtivismo soviético (os monocromos de Ródtchenko) de 1921, de certa maneira só ganham sua dimensão crítica e institucional em função de obras do artista conceitual belga Marcel Broodthaers e do minimalista norte-americano Daniel Buren, apresentadas 50 anos depois.

Grande parte da importância do livro é resultado desta vontade de propor alternativas às interpretações engessadas dos movimentos das décadas 60 e 70. O capítulo sobre o minimalismo talvez seja mais interessante para o leitor americano, mas o estudo do impacto nas artes no auge das teorias semiológicas ganha relevância geral ao mostrar como o surgimento nas artes de um interesse pelas marcas indexicais e dos impulsos alegóricos se alimenta do questionamento pós-estrutural. Entretanto, é o capítulo cujo título deu nome ao livro que justifica melhor a sua reverberação. Aqui, Foster procura driblar o que percebe como os dois modelos representativos predominantes na crítica das últimas décadas: o modelo referencial e o simulacral, que se desdobram no antagonismo tradicional entre arte “realista” e arte pop. O primeiro modelo, diz Foster, entende as imagens e os signos como ligados aos referentes, aos temas iconográficos ou a coisas reais no mundo da experiência. No segundo, todas as imagens são consideradas meras representações de outras imagens, o que converte todo o sistema representativo, inclusive o realismo, num sistema autorreferencial. Mas por que não pensar a representação contemporânea como ao mesmo tempo referencial e simulacral? Como uma criação de imagens que são conectadas à realidade, mas também desconectadas. Que são simultaneamente reais e artificiais, afetivas e frias, críticas e complacentes.

Para Hal Foster é esse desafio de entender a coexistência simultânea dos dois modos de representação que aparece na obra de Andy Warhol, claramente visível na série “Death and Disaster”. Construída sobre a repetição de imagens chocantes da imprensa, por exemplo de acidentes de trânsito ou de cenas de linchamentos, a série de Warhol produz o impacto do que Foster denomina “realismo traumático”. Aqui, o realismo já não é o efeito da representação, mas um “evento de trauma”, uma imagem da violência social e política marcada afetivamente pelo limite do que pode e não pode ser representado. É uma imagem que se torna um índice e um arquivo dessa mesma impossibilidade e insinua uma referencialidade superior, explicando a centralidade do arquivo e da antropologia nos movimentos artísticos dos anos 80 e 90.

É importante frisar que a perspectiva de Foster, embora inicialmente ligada a um fenômeno extremo localizado nas artes plásticas, rapidamente ganhou força na interpretação de uma paixão contemporânea muito mais abrangente pelo real. Ela perpassa todas as artes — da literatura ao cinema e às artes visuais e performativas em geral —, enfatizando aspectos documentais, testemunhais, performáticos, relacionais e indiciais em concorrência direta e frequentemente polêmica e promíscua com a demanda maciça de realidade na cultura midiática.

Karl Erik Schøllhammer é professor do departamento de Letras da PUC-Rio e autor de “Cena do crime: violência e realismo no Brasil contemporâneo” (Civilização Brasileira), entre outros livros.

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