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Ruth Rocha celebra 40 anos de literatura


Foto (Foto: Arquivo)

A grande dama da literatura infanto-juvenil brasileira, Ruth Rocha, celebra 40 anos de carreira em grande estilo. Toda sua obra está sendo relançada pela Salamandra, em um caso raro no mercado editorial brasileiro. A escritora, que já perdeu a conta de quantos livros escreveu -  "devo ter uns 140, talvez um pouco mais"  - tem agora um contrato de exclusividade com a casa. Além das novas edições de sua obra completa, Ruth será homenageada no Salão FNLIJ do Livro para Crianças e Jovens, que começa dia 11, no Rio de Janeiro. Dia 14 ela fará sessão de autógrafos e, no dia 16, estará ao lado de Ana Maria Machado, Joel Rufino dos Santos e Ziraldo, todos comemorando quatro décadas de dedicação à literatura infanto-juvenil. Para completar, a Flipinha — braço educativo da Festa Literária Internacional de Paraty, que acontece em julho — também prestará tributo à autora cuja capacidade de abordar temas complexos de maneira simples e lírica encanta crianças em todo o mundo. Em meio a tantas conquistas,  Ruth conta que está feliz por ver sua obra viva. (Foto de Sergio Barzaghi/Diário de S.Paulo)

Como foi que começou a escrever para crianças e jovens?
Era orientadora educacional em escolas. Fui convidada para escrever sobre educação e durante quase três anos escrevi uma coluna na revista “Claudia”. Depois fui convidada pela Sonia Robatto para ser orientadora pedagógica na revista “Recreio”. Aí ela me pediu um texto e insistiu muito, eu dizia que não sabia fazer. Um dia fui para a casa dela e ela me trancou com uma máquina de escrever e um monte de papel e falou: “você agora escreve uma daquelas histórias que conta para sua filha”.

Você inventava histórias?
Vivia inventando histórias para minha filha. Ela queria histórias de coisas, não queria que eu lesse “Branca de Neve”, queria a história da planta, do livro, do cinzeiro. Aí eu criava as coisas mais loucas. Um dia ela me perguntou: “por que preto é pobre?” Eu me dei conta de que esses são assuntos que a gente esquece de ventilar com criança pequena. Foi uma coisa muito bonita que me aconteceu: escrever “Romeu e Julieta”, meu primeiro livro antirracista. Não é por acaso que a gente faz isso. É um problema que temos introjetado e é preciso estar sempre alerta no Brasil, discutir, brigar. Todo mundo gostou muito dessa primeira história e aí peguei no tranco.


Sua obra lida com temas profundos de maneira simples e delicada. Monteiro Lobato é uma referência?
Lobato me influenciou de várias maneiras. Influenciou como língua e iniciou no Brasil essa literatura informal, irreverente para crianças. Ele abriu esse caminho para mim. Sua obra se preocupa muito com problemas sociais, com folclore, com a realidade e a identidade brasileira. É um autor feminista, embora ninguém fale. Os melhores personagens de Lobato são mulheres, como a Emília, minha preferida. E o humor. Sempre fui uma menina engraçada, metida a palhaça. Por isso mesmo, quando li Lobato, me identifiquei com aquela ironia e graça. Foi a leitura mais importante que eu fiz na infância.

Qual é o cenário da literatura brasileira hoje? 
A literatura brasileira para crianças está bem à frente dos outros países. Muitos países continuam fazendo “A bela e a fera”, “O gato de botas”... Estive na Feira de Frankfurt algumas vezes e me espantei ao ver quantos livros têm as mesmas histórias. Livros lindos, coloridos, bem ilustrados, mas que contam sempre as mesmas histórias. A diferença é que a literatura brasileira para jovens e crianças aborda temas que no exterior não são abordados. Ninguém fala, por exemplo, sobre autoritarismo, censura. João Carlos Marinho escreveu um livro chamado “Caneco de prata” e foi detido pela ditadura porque falava mal do esquadrão da morte. A professora que o levou para falar na escola foi expulsa do serviço público. Nós fazemos esse tipo de coisa. Levamos a criança mais a sério, falamos com ela como ela é, mais esperta. Outras literaturas falam com ela como se fosse mais tolinha. Houve um grupo de escritores, a geração de 70, como eu, Ana Maria Machado, Ziraldo, João Carlos Marinho, Joel Rufino, e outros que começaram depois como Edy Lima, Marina Colasanti, Lygia Bojunga Nunes, Bartolomeu Campos de Queiroz, que tratam a criança com muito respeito. Alguns novos apareceram que me parecem muito bons. Citaria das novas gerações Anna Flora e Walcyr Carrasco, que fez alguns livros infantis excepcionais.


Como você está se sentindo com as homenagens pelos 40 anos de carreira?
É incrível. Estou muito satisfeita, contente, alegre. Não sou uma pessoa que liga muito para homenagens, mas vejo a minha obra viva e isso me deixa muito feliz, porque tenho 40 anos de livros e estão quase todos vivos. Há meia dúzia fora de catálogo. Isso no Brasil, um país em que ninguém lê, ou a gente pensa que ninguém lê. Acho que tenho muitos leitores e isso me deixa muito satisfeita.


Você tem acompanhado no noticiário a polêmica recente de indicação de livros impróprios ou com erro para escolas? O que acha disso?
Como é que esse livros são escolhidos? Quem escolhe e para qual finalidade? Quando a gente indica um livro na escola, ele deve fazer parte de um programa de educação. Não é um livro para o menino ficar contente, tem que fazer parte de todo um esquema educativo. Na minha cabeça, o livro deve entrar para educar as crianças na sensibilidade, no entendimento do que é a arte. Perceber o que é um livro, uma narrativa. Fazer com que a criança leia livros que estejam ao alcance dela e nos quais ela possa encontrar estímulos para ler outras coisas, se preocupar com outros problemas e se enriquecer. Não acho que livro deva ser dado nem para estudar gramática, trânsito ou sexo. Livro não tem que ser utilitário.


Falar de igual para a igual com uma criança é natural ou existe um esforço de linguagem e de criação para conseguir isso? 
Tenho naturalidade tanto para falar com criança como para escrever. Tive uma infância muito feliz. Não enterrei nada, não tenho mágoa, e acho que é por isso que tenho uma atitude natural e de cumplicidade com as crianças. Mas acho a criança muito mal tratada. No Brasil não se resolve o problema da infância porque ninguém liga, ninguém quer.


Qual a função do autor e da literatura infanto-juvenil?
A obrigação do escritor é mostrar uma visão de mundo. Hoje a literatura procura abrir caminhos em vez fechar. Moral da história fecha a história. Embora minhas histórias sempre tenham um fim, porque criança não gosta de não saber como termina, meus fins não querem dizer que acabou. Deixo sempre uma abertura que permita pensar dali para a frente. Sinto que a literatura modifica. Não tenho essa ilusão de mudar o mundo, mas acho que o bom escritor é aquele capaz de modificar o leitor um pouquinho.


Quantos livros você já escreveu?
Devo ter uns 140 livros, talvez um pouco mais. Perdi a conta. Tenho um livro sobre o planeta Halley, que não virou planeta, aí o livro ficou prejudicado e saiu de catálogo. Tenho uma série de 12 livros que vendi muito na Europa, na Ásia, na Índia, em seis idiomas diferentes. Mas aqui no Brasil tivemos dificuldades, porque eram livros cartonados, caríssimos. Aí resolvemos fazer outra coisa com eles. Então fica difícil contar, vou ficando meio confusa.


Normalmente escritores infanto-juvenis têm projetos com diversas editoras. A partir de agora você é exclusiva da Salamandra. Como funciona isso? 

Quando comecei tinha todo interesse em espalhar minha obra. A distribuição era muito precária e eu sempre escrevi muito. Ninguém teria aguentado publicar tanto. Mas quando me fizeram essa oferta de exclusividade, eu achei ótimo. Estou cansada de contratos. Fizeram uma oferta muito boa de 15 anos de duração. Então, vou ficar com esse contrato, vou morrer antes dele acabar e vai ficar tudo bem.


Há projetos que você gostaria de ter feito e ainda não fez?
Tenho tantos projetos e muitos não consegui levar à frente. Por enquanto, estou tratando de editar meus livros na nova editora e deixei alguns planos de lado. Tenho pronta uma antologia de poesia infantil. Tinha um projeto de ciência e arte, mas acho que vou deixar de lado. Tenho projetos para teatro, para “Marcelo, marmelo, martelo”. E “Faca sem ponta galinha sem pé” deve virar filme.


Como é sua parceria com os ilustradores? 
Tenho a opinião de que a ilustração tem que acrescentar. Ela não pode contar a mesma história que estou contando, tem que dizer mais, enriquecer o livro. Escolho ilustradores nos quais confio e os deixo trabalhar. Nunca me meti muito. Porque aí saem sempre coisas fantásticas.

 

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