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Um campo de relações delicadas

Foto (Foto: O presidente Médici com a taça Jules Rimet, em 1972)


Livro mostra que autoritarismo disseminado pelas ditaduras influenciou facetas que perduram até hoje no meio futebolístico

Por Leonardo Cazes

A campanha brasileira na Copa do Mundo de 1970 foi apropriada com sucesso pelo governo do General Emílio Garrastazu Médici e se tornou um símbolo da proximidade entre o futebol e o poder. Contudo, o uso político do esporte no país é bem mais antigo e não se restringe aos períodos autoritários da nossa história. Começa com Getúlio Vargas, o primeiro líder brasileiro a perceber o papel central do futebol na construção do imaginário nacional, e atravessa diferentes governos deixando resquícios que permanecem até hoje. É o que mostra o livro “Da ditadura à ditadura: uma história política do futebol brasileiro (1930-1978)” (EdUFF), do historiador Euclides de Freitas Couto, professor da Universidade Federal de São João del Rei (UFSJ), que será lançado com debate na próxima sexta-feira, às 19h, na Travessa do Shopping Leblon.

O historiador chama atenção que no documento intitulado “Programa de Reconstrução Nacional”, datado de 1930, já constava um tópico dedicado ao futebol. Ele aponta a criação de uma engenharia institucional baseada na fiscalização, na censura e no controle hierárquico das entidades esportivas. A Confederação Brasileira de Desportos (CBD) teve os seus poderes ampliados e federações ligadas a ela conseguiram facilidades e verbas para a organização de competições, a construção de estádios e de centros esportivos. A seleção brasileira, elevada ao status de símbolo nacional, tornou-se o locus perfeito para promover a ideologia estado-novista de ordem e disciplina, além de estimular as práticas esportivas na população. A atuação estatal também teve como objetivo pacificar as disputadas entre Rio e São Paulo na escolha do escrete brasileiro.

— Na medida em que o futebol foi sendo adotado pelos segmentos populares, ou seja, se tornando uma espécie de bem comum entre os brasileiros, o governo Vargas, habilmente, reuniu esforços para obter seu controle administrativo e organizacional, criou mecanismos para instrumentalizá-lo a serviço da educação e, consequentemente, o incorporou ao discurso da nacionalidade — afirma o professor.

O fim da ditadura de Vargas não representou um afastamento entre política e futebol. A disputa na Câmara dos Vereadores do Rio de Janeiro sobre a necessidade de construção do Maracanã, para a Copa do Mundo de 1950, foi duríssima, conta o historiador. O maior defensor da obra era o vereador Ari Barroso. Já o principal opositor era Carlos Lacerda, que criticava o volume de investimentos públicos e acusava o projeto de guardar semelhanças com as construções fascistas. A Câmara chegou a encomendar uma pesquisa do Ibope, com resultado amplamente favorável à iniciativa, que tinha o apoio de 79% da população. Mesmo assim, foram necessárias três votações para que o projeto fosse aprovado.

— Esse fato demonstra o quão acirrado era o debate político em torno da Copa do Mundo. A realização do torneio e, sobretudo, a construção do Maracanã se apresentam como expressivas vitórias políticas conquistadas pelo governo Dutra. Embora o fracasso na final contra o Uruguai e as inúmeras falhas de organização tivessem ofuscado o brilho do evento, no plano simbólico o governo contabilizou notáveis ganhos, especialmente por ecoar o discurso do progresso no qual o Brasil poderia se vangloriar por ter sido capaz de organizar um dos mais importantes eventos esportivos do planeta e por construir o maior estádio do mundo.

Em 1958, o Plano de Metas de Juscelino Kubitschek foi incorporado pela seleção com o Plano Paulo Machado de Carvalho, dirigente da CBD e empresário paulista. Era o planejamento estratégico levado para o esporte. O plano consistia num extenso cronograma de preparação física, psicológica e técnica cujo objetivo era oferecer aos jogadores condições de igualdade nas disputas contra seleções europeias, considerados mais fortes fisicamente. Até por testes psicotécnicos os atletas passaram. O inédito título mundial mostrou que o caminho estava certo.

No regime militar, a relação com o futebol passou por dois momentos opostos. No governo Castelo Branco a opção foi pelo afastamento, mas a péssima campanha na Copa de 1966, na Inglaterra, abriu caminho para uma militarização das instituições esportivas, da seleção brasileira e dos clubes a partir da chegada de Costa e Silva ao poder. Em 1969, o então presidente criou o Departamento de Educação Física e Desporto (DED), que centralizou as ações do setor. A atividade física voltara a ser questão de Estado, como no Estado Novo, e era compreendida como uma forma de controle ideológico. O futebol, o mais popular dos esportes, deveria traduzir os ideais da Doutrina de Segurança Nacional.

Esse modelo atingiu seu ápice durante o governo Médici. Criada em 1970, a Agência Especial de Relações Públicas (Aerp) produzia peças publicitárias que relacionavam o sucesso da seleção com as realizações dos militares, especialmente as obras de infraestrutura. O presidente era apresentado como um homem do povo, apaixonado por futebol. Como torcedor, também tinha as suas preferências: queria a convocação de Dario, atacante do Atlético Mineiro, mas o então técnico João Saldanha não acatou e ainda respondeu: “O general nunca me ouviu quando escalou o seu ministério. Por que, diabos, teria eu que ouvi-lo agora?”

O caso é apontado como decisivo para a demissão do treinador, mas Couto apresenta outra versão. Na sua análise, Saldanha, conhecido pelo temperamento explosivo, foi vítima de uma estratégia montada pelo próprio governo para desgastá-lo junto aos jogadores e à opinião pública. Os militares temiam que o técnico aproveitasse a visibilidade da Copa do México para dar declarações contra o regime, como já tinha feito em viagens anteriores à Europa.

Para Couto, o autoritarismo que o regime inseriu no esporte se mantém atual. E vai além do regime de concentração.

— O autoritarismo disseminado pela ditadura assumiu muitas faces no meio futebolístico. O futebol espetáculo é um fenômeno midiatizado, o que, no plano simbólico, o permite transmitir a sensação de proximidade entre espectadores e jogadores. Essa ilusão, associada ao pertencimento clubístico e reforçada por uma racionalidade autoritária são responsáveis pela imposição da vigilância aos jogadores, cujas vidas pessoais passaram a ser acompanhadas meticulosamente. A ideia de que um jogador era um soldado a serviço da pátria adquiriu grande ressonância entre os cronistas esportivos. Assim, a metamorfose do papel social de “jogador” para o de “atleta de futebol”, exigida pelos padrões competitivos que se impunham no cenário internacional, encontrou no Brasil como grande aliado o discurso autoritário produzido na caserna.

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