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Série para maratonar

Bom dia, Verônica, boa noite, Janete

Camila Morgado é Janete, a personagem mais crível e impactante do thriller 'Bom dia, Verônica'

Se você é mulher, precisa assistir à série “Bom dia, Verônica” na Netflix. Se você é homem, também. Eu vi os oito episódios de 45 minutos em dois dias. Sozinha. Só não terminei em um dia porque já era madrugada. A violência do tenente-coronel psicopata contra mulheres era tão crua que eu me fiz a pergunta: por que fui encadeando, sem conseguir parar, um conteúdo tão doentio?

Não foi por causa da escrivã heroína, a Verônica (Tainá Müller), que tenta desesperadamente escapar ao boicote de chefes e colegas numa delegacia corrupta – e salvar mulheres vítimas de golpes físicos e emocionais. Não foi por causa do serial killer Brandão, encarnado com talento e vigor por Du Moscovis. Foi a Janete que me fez ficar acordada. A esposa tripudiada no dia a dia, assediada moralmente. Agredida, esmurrada. Enfraquecida. Cúmplice por medo. 

Apaixonada pelo marido, Janete acaba achando que tudo é erro seu. Os abortos espontâneos. O descontrole do Brandão. A vida isolada, sem celular e sem internet. Sua mente está em cárcere privado. Dormente. Anestesiada. A gente torce por Janete. A atuação de Camila Morgado – digna de prêmio – constrói a personagem mais crível e impactante da série. Com todas as contradições e nuances, os surtos de força e desânimo. 

Talvez você já tenha lido que a série se baseia em romance homônimo de Ilana Casoy e de Raphael Montes. Eles publicaram o livro sob o pseudônimo de Andrea Killmore. O “kill more” se aplica com perfeição ao policial Brandão, viciado em matar sempre mais. “Tomara que eu consiga fazer as pessoas odiarem o Brandão! O que eu fico preocupado é que ele seja odiado por uma galera masculina que não consiga se enxergar nele. Não é para rejeitar esse cara como se ele não existisse”, disse o ator.

Brandão extrapola na crueldade e, mesmo assim, mima Janete em cenas de amor doméstico, quando a chama de “a mulher de minha vida” e leva o café da manhã na cama. Ela acredita. Tenta consertar o marido. A mistura de fé e santos com obsessões prende e aflige o espectador. A persistência da escrivã, Verônica, que coloca em risco marido, filhos e vive para recuperar o nome e a honra do pai policial, também impressiona. Há Verônicas por aí. Algumas se mandam do Brasil. Morrem a tiros. Ou entregam o distintivo.

Mas é Janete que me mantém ali no sofá, sem dormir. Janete e suas versões mais amenas pelo Brasil afora. Lembro quando, adolescente, me resignava com os beliscões e puxões de cabelo do primeiro namorado, doente de ciúme. Por pouco não morri. E teria sido um “acidente”. Eu lia tanto, era boa aluna, por que demorei a dar um basta no namoro? Mais tarde, entendi na análise. Também lembro que, na redação de um jornal, a colega inteligente, casada e mãe, chegava com manchas roxas que tentava disfarçar. Desconversava. Um dia ela me disse. Ele faz isso quando bebe. Ela terminou a história. Quantas não conseguem?

Sei que haverá mulheres que culparão Janete, por suportar, por se submeter. Dirão que Janete não existe no mundo real. Mas...mais de 500 mulheres são agredidas por hora no Brasil. É triste demais. 

Quando vemos o representante de vendas Carlos Samuel Freitas Costa Filho dar nove socos no rosto da namorada encostada no carro, deixá-la jogada numa rua de Ilhéus, na Bahia, e ela não dar queixa na polícia, sabemos que muitas mulheres não denunciam por medo de morrer, muitas perdoam por amor e muitas denunciam e mesmo assim acabam mortas.

Carlos Samuel só foi preso ontem porque a covardia foi filmada por moradores de um prédio. Seu histórico mostra outras dez agressões, uma contra a mãe. Diz que está “arrependido”, que estava embriagado quando esmurrou a namorada e que espera “reprimendas judiciais”. Nós, mulheres, esperamos muito mais da Justiça.

Ligue 180. E assista ao thriller “Bom dia, Verônica”. Com um olho na ficção e outro na realidade.

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