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Coluna
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Como a esquerda brasileira morreu

É um sintoma de que o grupo não é mais capaz de impor outro horizonte econômico-político e só conhece um horizonte de atuação, o “populismo”

Vladimir Safatle
Militante do PT chora após a vitória de Bolsonaro, em 2018.
Militante do PT chora após a vitória de Bolsonaro, em 2018.Nelson Antoine (AP)
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Redação de EL PAÍS.
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Este é um artigo que gostaria de não ter escrito e não tenho prazer algum em fazer enunciações como a que dá corpo ao título. No entanto, talvez não haja nada mais adequado a falar a respeito da situação política brasileira atual, depois de um ano de Governo Jair Bolsonaro e a consolidação de seu apoio entre algo em torno um terço dos eleitores. Aqueles que acreditavam em alguma forma de colapso do Governo e de sua base precisam rever suas análises. O que vimos foi, na verdade, outro tipo de fenômeno, a saber, a inoperância completa do que um dia foi chamado de “a esquerda brasileira” enquanto força opositora. Não que se trate de afirmar que ela está diante do seu fim puro e simples. Melhor seria dizer que um longo ciclo que se confunde com sua própria história termina agora. O pior que pode acontecer nesses casos é “não tomar ciência de seu próprio fim” repetindo assim uma situação que lembra certo sonho descrito uma vez por Freud na qual um pai morto continua a agir como se estivesse vivo. A angústia do sonho vinha do fato do pai estar morto e nada querer saber disto. Se a esquerda brasileira não quiser ver sua morte definitiva como destino, seria importante se perguntar sobre qual é esse ciclo que termina, o que ele representou, quais seus limites.

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Signos não faltaram para tal diagnóstico terminal. Contrariamente ao discurso de que o Governo Bolsonaro estaria paralisado, vimos ao contrário a aprovação de medidas até pouco tempo impensáveis, como a reforma previdenciária, isso sem nenhuma resistência digna deste nome. Ou seja, a maior derrota da história da classe trabalhadora brasileira foi feita sem que anotassem sequer o número da placa do carro responsável pelo atropelamento. Uma reforma da mesma natureza, mas menos brutal, está a tentar ser imposta na França. O resultado é uma sequência de greves e manifestações de vão já para o seu terceiro mês. Na verdade, o que vimos no Brasil foi o contrário, a saber, governos estaduais pretensamente de esquerda a aplicarem reformas estruturalmente semelhantes. Como se fosse o caso de dizer que, no final, governo e oposição comungam da mesma cartilha, sendo distinta apenas a forma e a intensidade de sua implementação. Fato que já havíamos visto com o segundo Governo Dilma e sua guinada neoliberal capitaneada por Joaquim Levy.

Isso é apenas um sintoma de que a esquerda brasileira não é mais capaz de impor outro horizonte econômico-político. Durante todo o ano de 2019, diante de um Governo cujas políticas visam a retomada, em chave autoritária, dos processos de concentração de renda, de acumulação primitiva e de extrativismo colonial, não foram poucos aqueles que esperaram da esquerda brasileira (todos os partidos e instituições inclusas) a expressão de outro tipo de política. A esquerda governa estados, municípios grandes e pequenos, mas de nenhum deles saiu um conjunto de políticas que fosse capaz de indicar a viabilidade de rupturas estruturais com o modelo neoliberal que nos é imposto agora. Houve época que a esquerda, mesmo governando apenas municípios, conseguia obrigar o país a discutir pautas sobre políticas sociais inovadoras, partilha de poder e modificação de processos produtivos. Não há sequer sobra disto agora.

Talvez seja o caso de insistir neste ponto porque, como dizia Maquiavel, o povo prefere um governo ruim a governo nenhum. Não são as qualidades do Governo Bolsonaro que dão a ele certa adesão popular. É o vazio, é o fato de não haver nenhuma outra alternativa realmente crível neste momento. E a razão disso é simples: a esquerda brasileira morreu, ela tocou seu limite e demonstrou não ser capaz de ultrapassá-lo. Isso vale tanto para partidos, sindicatos quanto para a classe intelectual (na qual me incluo). Nossas ações até agora não se demonstraram à altura dos desafios efetivos. O melhor a fazer seria começar a se perguntar pela razão de tal situação.

Coloquemos uma hipótese de trabalho: a esquerda brasileira conhece apenas um horizonte de atuação, este que atualmente chamaríamos de “populismo de esquerda”. Foi ele que se esgotou sem que a esquerda nacional tenha se demonstrado capaz de passar para outra fase ou mesmo de imaginar o que poderia ser “outra fase”. Entende-se por populismo de esquerda um modelo de construção de hegemonia baseado na emergência política do povo contra as oligarquias tradicionais detentoras do poder. Este povo é, na verdade, produzido através da convergência de múltiplas demandas sociais distintas e normalmente reprimidas. Demandas contra a espoliação de setores sociais, contra a opressão racial, contra os legados do colonialismo: todas elas devem convergir em uma figura que seja capaz de representar e vocalizar esta emergência de um novo sujeito político.

No entanto, o caráter nacionalista do populismo permite também a inclusão de setores descontentes da oligarquia, grupos da burguesia nacional dispostos a ter um papel “mais ativo” nas dinâmicas de globalização. Assim, o “povo”, neste caso, nasce como uma monstruosa entidade meio burguesia, meio proletariado. Uma mistura de JBS Friboi com MST.

Este é o modelo que a esquerda nacional tentou implementar em sua primeira tentativa de governar o Brasil: a que termina com o golpe militar contra o Governo João Goulart. Na ocasião, um dos personagens mais lúcidos de então, Carlos Marighella, faz um diagnóstico preciso: a esquerda havia apostado na conciliação com setores da burguesia nacional e com setores “nacionalistas” das forças armadas dentro de governos populistas de esquerda. Ela colocou toda sua capacidade de mobilização a reboque de uma política que parecia impor mudanças seguras e graduais. Ao final, tudo o que ela conseguiu foi estar despreparada para o golpe, sem capacidade alguma de reação efetiva diante dos retrocessos que se seguiriam.

A lição de Marighella não foi ouvida. Tanto que a esquerda brasileira fará o mesmo erro com o final da ditadura militar e com o advento da Nova República. A história será simplesmente a mesma: o movimento em direção a um jogo de alianças entre demandas sociais e interesses de oligarquias locais descontentes tendo em vista mudanças “graduais e seguras” que serão varridas do mapa na primeira reação bem articulada da direita nacional.

Nesse sentido, nossa história segue os passos da história argentina: outro campo de ensaio do populismo de esquerda. Mas há um diferença substancial aqui. Depois da experiência ditatorial, a Argentina soube criar um linha de contenção de impulsos golpistas. Hoje, quase mil pessoas ainda se encontram nas cadeias argentinas por crimes da ditadura. No Brasil, ninguém foi preso. A resposta argentina produziu uma linha de contenção, inexistente entre nós, que permitiu ao peronismo ter ressureições periódicas. Dificilmente, essa será a história brasileira daqui para frente, pois o risco de deriva militar é real entre nós.

Mas há ainda um outro fator decisivo. O colapso do lulismo não foi seguido apenas de um golpe parlamentar apoiado em práticas criminosas de setores do poder judiciário. Ele foi seguido da criação de uma espécie de antídoto à reemergência do corpo político populista. O que vimos, e agora isto está cada vez mais claro, foi a emergência de um corpo fascista. Mas o corpo político fascista é normalmente a versão terrorista e invertida de um corpo político anterior, marcado pela emergência do povo e pelas promessas de transformação social. Dessa forma, ele acaba por bloquear sua ressurgência. Já se disse que todo fascismo nasce de uma revolução abortada. Nada mais justo.

A esquerda está atordoada com o fato de a direita brasileira ter, enfim, produzido a sua figura com capacidade de incorporação do povo

Theodor Adorno um dia descreveu o líder fascista como uma mistura de King Kong e barbeiro de subúrbio (certamente pensando no Chaplin de O grande ditador). Essa articulação entre contrários é fundamental. A pretensa onipotência do líder fascista deve andar juntamente com sua fragilidade. O líder fascista deve ser “alguém como nós”, com a mesma falta de cerimônia, a mesma simplicidade e irritação que nós. A identificação é feita com as fraquezas, não com os ideais. Ele deve ser alguém que come miojo em banquetes presidenciais, que se veste de maneira desajeitada como alguém do povo. Ele deve a todo momento dizer que está a combater as elites que sempre governaram esse país (que agora serão os artistas, as universidades, os “cosmopolitas” e “globalistas”). Ele deve mostrar que não é alguém da elite política, que na verdade tal elite o detesta. Pois se trata de criar um antídoto para toda forma de tentativa de recuperar a produção do povo como processo de emergência de dinâmicas de transformação social.

Dessa forma, tudo se passa como se Bolsonaro fosse uma versão militarizada de seu oposto, a saber, Lula. Não se trata com isso de afirmar que estamos presos em uma polaridade. Ao contrário, trata-se de dizer que tudo foi feito para anular a polaridade real, criando um duplo imaginário. Nunca entenderemos nada das regressões fascistas se não compreendermos estas lógicas dos duplos políticos. Se há algo que nos falta é exatamente polaridade. Temos pouca polaridade e muita duplicidade.

O fato é que tal dinâmica demonstrou-se eficaz. Ela quebrou os processos de incorporações populistas que foram, até agora, a alma da esquerda brasileira. Por isso, o que vemos agora é uma esquerda sem capacidade de ação, pois atordoada com o fato de a direita brasileira ter, enfim, produzido a sua figura com capacidade de incorporação do povo, agora sem o erro de apostar em um egresso da elite político-econômica (Collor) ou em alguém sem vínculos orgânicos com o militarismo fascista (Jânio).

Numa situação como essa, a esquerda nacional ainda paga o preço de ter sido formada para a coalizão e para a negociação. Esse é seu DNA, desde a política de alinhamento do PCB aos ditames anti-revolucionários do Soviete Supremo. Por isso, ela não sabe o que fazer quando precisa mudar o jogo e caminhar para o extremo. Sua inteligência não age nesse sentido, suas estruturas não agem nesse sentido, sua classe política não age nesse sentido. Seus movimentos de revolta perdem-se no ar por não ter nenhuma sustentação ou coordenação de medio e longo prazo. Foi assim que ela morreu. Se ela quiser voltar a viver, toda essa história tem que chegar a um fim. Ela deverá tomar ciência de seu fim.

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