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Coluna
Artigos de opinião escritos ao estilo de seu autor. Estes textos se devem basear em fatos verificados e devem ser respeitosos para com as pessoas, embora suas ações se possam criticar. Todos os artigos de opinião escritos por indivíduos exteriores à equipe do EL PAÍS devem apresentar, junto com o nome do autor (independentemente do seu maior ou menor reconhecimento), um rodapé indicando o seu cargo, título académico, filiação política (caso exista) e ocupação principal, ou a ocupação relacionada com o tópico em questão

Por que os ditadores e tiranos enchem a boca falando de “povo”?

Para eles, o povo é formado pelos mais incultos, pelos mais pobres, pelos que ficam sempre à margem das pessoas que detêm o poder e decidem o que é melhor para eles. Eles não precisam pensar. O tirano pensa por eles

Presidente Jair Bolsonaro acena para apoiadores em Brasília, no dia 5 de abril.
Presidente Jair Bolsonaro acena para apoiadores em Brasília, no dia 5 de abril.Eraldo Peres (AP)
Juan Arias

Não deve ser uma casualidade que os ditadores e tiranos adorem falar de “povo”. No Brasil, o presidente Jair Bolsonaro sempre se refere ao povo. Dias atrás, disse a seus seguidores que está “aguardando o povo dar uma sinalização” para tomar decisões.

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Quem é esse povo ao qual os ditadores sempre se referem? Em suas bocas, “povo” soa como um rebanho que segue fielmente as ordens do déspota. É a massa que obedece às cegas as ordens do tirano de plantão que a hipnotiza para torná-la objeto passivo de seus caprichos.

Para eles, o povo é formado pelos mais incultos, pelos mais pobres, pelos que ficam sempre à margem das pessoas que detêm o poder e decidem o que é melhor para eles. Eles não precisam pensar. O tirano pensa por eles.

Para os regimes autoritários, da qualquer cor política, basta oferecer miragens ao povo. O povo não tem direitos. Deve apenas seguir as ordens do dono do rebanho.

A diferença entre democracia e ditadura é que para a primeira existe a sociedade —plural, crítica, criativa, pensante— e, para a segunda, existem apenas as massas que esperam ordens do pai patrão que pensa e decide por elas.

A civilização é criada com o diálogo, a crítica e a polêmica.

A sociedade é construída com liberdade para criar e decidir em conjunto. A civilização supõe um confronto de ideias para chegar às melhores soluções na tentativa de oferecer oportunidades para todos. As pessoas têm sua individualidade, cada uma é diferente e tem o direito de discordar e dialogar. Uma civilização respeita e defende as diferenças. As tiranias anestesiam as massas. A civilização se enriquece com a dissensão e o pluralismo de ideias.

Nunca gostei do grito de “o povo unido jamais será vencido”. A verdade é que esse povo do qual os ditadores tanto gostam acaba sempre derrotado, mesmo quando tem a ilusão de ter vencido. Acaba sempre dominado e nos braços de outra ideologia.

O povo do qual os autoritários gostam é aquele ao qual nunca ofereceram igualdade de oportunidades para avançar na vida. Por isso, nos regimes sem democracia, com desigualdades sociais cruéis, seus líderes idolatram o povo, que para eles é mais fácil dominar e enganar.

Não por acaso, os regimes totalitários são os que menos valorizam a educação e a cultura, os pilares que nos permitem ter nossa própria visão do mundo.

É mais fácil escravizar os incultos, os que não são capazes de interpretar o mundo e de fazer escolhas, porque eles já recebem o prato pronto, sem que possam escolher a comida. Não é isso que fazemos com os animais?

O que diferencia as pessoas é se elas nascem em um país no qual todas têm as mesmas oportunidades de avançar na vida ou no qual os dirigentes é que decidem quem terá direito à cultura e ao pensamento e quem deverá se contentar com as sobras dos privilegiados. Nos países onde não se oferece igualdade de oportunidades é que se formam a massa que não precisa pensar, as elites decidem por ela.

A escravidão existe desde o início da humanidade. Sempre foi negado aos escravos o direito ao estudo. Aqui no Brasil, até não muito tempo atrás, era normal que a escola fosse só para os filhos dos ricos. Os pobres, dizia-se, “devem trabalhar, como seus pais sempre fizeram”. Quando a escravidão foi abolida, não foi oferecida aos libertos a possibilidade de se culturalizar. Não por acaso, o que os políticos chamam de povo nada mais são do que os herdeiros da escravidão, aos quais se ensina a virtude da obediência, nunca a liberdade de pensamento e de decisão.

A linguagem nunca é inocente e costuma estar repleta de significados muito diferentes.

Desconfie sempre de quem enche a boca falando de povo, porque já foi impregnado pelas ideologias intolerantes e escravistas. As ovelhas não recebem nome e sobrenome. E é significativo que os pobres e sem cultura não costumem ser chamados por seus nomes próprios por seus “donos”, e sim por apelidos. É que não são vistos como pessoas. São povo, massa, gado. Será que também não têm alma?

As elites costumam dizer: “Chame minha secretária, meu cozinheiro, minha empregada, meu motorista”. O povo não tem nome próprio. Mas até nossos animais de estimação são chamados pelo nome.

É urgente rever nossa linguagem, que sempre nos trai.

As palavras carregam em seu ventre o significado que vamos dando a elas.

Hoje, liberdade, direitos, respeito às diferenças, construção conjunta de uma civilização de diálogo sem donos nem senhores de ninguém, sem ódios nem divergências sangrentas, tudo isso é o que chamamos de democracia. Todo o resto é fascismo.

Escrevo esta coluna neste 25 de abril, aniversário da Revolução dos Cravos de Portugal. Por esse motivo, uma poeta brasileira escreveu no Facebook:

Morte aos déspotas de todos os tempos.

Para os que já morreram,

que morram suas ideias.

Que suas armas

se transformem

em livros e flores.

Que um dia cada vida possa viver

a sua própria arquitetura de sonhos,

talentos.

Que o pão se multiplique,

que o amor seja o pão.

Juan Arias é jornalista e escritor, com obras traduzidas em mais de 15 idiomas. É autor de livros como Madalena, Jesus esse Grande Desconhecido, José Saramago: o Amor Possível, entre muitos outros. Trabalha no EL PAÍS desde 1976. Foi correspondente deste jornal no Vaticano e na Itália por quase duas décadas e, desde 1999, vive e escreve no Brasil. É colunista do EL PAÍS no Brasil desde 2013, quando a edição brasileira foi lançada, onde escreve semanalmente.

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