• Ana Luiza Cardoso | Produção Lucas Freitas | Fotos Wesley Diego Emes
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Paulo Nazareth fala o racismo na arte e revela os novos projetos com foco na Ásia (Foto: Wesley Diego Emes)

Ao lado da obra pendurada Coringa (em processo), o artista veste camisa da série Nova República das Bananas – no chão, à esq., Luzias, referência ao fóssil humano de 11.500 anos encontrado em 1974 nos arredores de Belo Horizonte, e, à dir., Productos de Genocídio: Barão y Caboclo

Filho de gari, Paulo Nazareth acostumou-se, quando criança, a remendar e montar brinquedos com cacarecos que a mãe pegava nas ruas de Santa Luzia, região metropolitana de Belo Horizonte. “A ideia era reconstruir partes faltantes e corpos desmembrados com embalagens de remédio, pasta de dente e chicletes achadas no chão”, diz. “A economia já precária havia sido fragilizada pela ditadura militar e todo aquele milagre prometido estava ruindo.” Com frequência ele recorre a essa lembrança ao explicar por que se tornou um artista andarilho, e assim conquistou reconhecimento internacional por meio de travessias das Américas e da África, a pé, de ônibus ou pedindo carona.

Paulo Nazareth fala o racismo na arte e revela os novos projetos com foco na Ásia (Foto: Wesley Diego Emes)

As viagens de Nazareth foram documentadas em vídeos, fotografias e esculturas feitas com objetos recolhidos no caminho. Na jornada Notícia de América (2011), ele passou por 15 países até chegar aos Estados Unidos. Em um ato performático, lavou os pés encardidos no Rio Hudson, em Nova York. Antes do retorno, apresentou na Art Basel Miami a obra Banana Market / Art Market – uma Kombi repleta de cachos de banana, um dos trabalhos mais elogiados ao longo da feira. Ao lado da instalação, ele segurava a placa My Image of Exotic Man for Sale (minha imagem de homem exótico à venda, em tradução livre). Essa aventura se transformou no livro Paulo Nazareth: Arte Contemporânea/LTDA, lançado em 2012 (Ed. Cobogó, 160 págs.).

Paulo Nazareth fala o racismo na arte e revela os novos projetos com foco na Ásia (Foto: Wesley Diego Emes)

Paulo Nazareth fala o racismo na arte e revela os novos projetos com foco na Ásia (Foto: Wesley Diego Emes)

“A caminhada permite o contato com a rua, os prédios, a arquitetura, os objetos a serem encontrados”, reflete. “Minha mãe fazia a gente andar para não ficar menino bobo.”

Paulo Nazareth fala o racismo na arte e revela os novos projetos com foco na Ásia (Foto: Wesley Diego Emes)

Paulo Nazareth fala o racismo na arte e revela os novos projetos com foco na Ásia (Foto: Wesley Diego Emes)

Para Cadernos de África (2013), saiu de Minas Gerais rumo à Cidade do Cabo, na África do Sul, depois seguiu para o norte do continente. Registros da incursão adentraram a Bienal de Lyon no mesmo ano. Hoje, aos 44 anos, ele desbrava o mundo perto de casa, no conjunto habitacional periférico Palmital, na mesma Santa Luzia da infância. Barradas pela pandemia, suas andanças alcançam apenas pontos culturais no entorno, como as casas Nazareth Cassiano de Jesus e a Borun, onde já realizou mostras paralelas às bienais de Veneza e São Paulo (lá, chamada de Bienal de Seu Paulo).

Paulo Nazareth fala o racismo na arte e revela os novos projetos com foco na Ásia (Foto: Wesley Diego Emes)

Paulo Nazareth fala o racismo na arte e revela os novos projetos com foco na Ásia (Foto: Wesley Diego Emes)

“Dar a volta na cozinha, em ruelas dos bairros... todos os dias há uma possibilidade de caminho. Mesmo sendo o de ontem, hoje já é outro, surgiu algo novo. Seja na arquitetura, na pintura, seja o mato que cresceu ou uma árvore cortada, são viagens intermináveis. O mundo pode ser o próprio bairro”, filosofa. “E tem outro tipo [de trajeto]: pelo sonho. Esse próprio repousar o corpo, a cabeça, os olhos e viajar no tempo e no espaço. A viagem sempre continua.” Representado pela galeria Mendes WoodDM, o artista se prepara para exposição na Bienal de São Paulo (prevista para abrir em setembro) e eventos na Alemanha e na África do Sul.

"Esculturas da série MC – Arquitetura Imaginária ou Arqueologia do Futuro"

 

Em sua casa, a placa Paulo Nazareth Arte Contemporânea LTDA “demarca a sede da matriz de minha multinacional”, brinca. “É um jogo com o lugar da firma, a assinatura, que ganha essa visibilidade enquanto a pessoa desaparece. É quando nada mais importa, só a marca”, afirma. “O ser Nazareth é o sujeito de arte. Eu sou Paulo Sérgio da Silva. Nazareth é a mãe de minha mãe, que eu passo a carregar.”

Apesar de desfrutar da posição vantajosa de um artista contemporâneo de renome, a trajetória profissional de Nazareth começou comum “não”. Ele lembra as negativas ao tentar seguir as profissões de policial, advogado ou médico. Trabalhou, portanto, como faxineiro, vendedor ambulante e padeiro. “Foi um ano de ‘não’,mas também de encontro. Conheci mestre Orlando, baiano de Salvador”, conta. “Ele falava desse lugar do artesanato como arte nata, que nasce conosco. Dizia‘quando a sua mãe trazia os brinquedos e você talhava as partes faltantes, ali estava o artista’.” Nazareth então ingressou, em 1998, na Escola de Belas Artes da UFMG. No início, trafegava entre cinema, performance, desenho, fotografia, dança e teatro de bonecos. Em 2006, por indicação do artista mineiro Marco Paulo Rolla, conseguiu uma bolsa para uma residência na Índia e lá começou as caminhadas, no norte do país. Deparou com os sadhus, homens sagrados que perambulam desprendidos de bens materiais, em busca de iluminação. “Assim como me descobrir artista, a caminhada estava ali, era o primeiro meio de transporte humano, é a ocupação do mundo. As estradas são feitas em cima de trilhas, e os caminhos foram transformados em cidades”, reflete.

Questionado sobre a possibilidade de obter maior visibilidade diante de movimentos como Black Lives Matter, ele se mostra cético e destaca que colhemos hoje frutos de uma batalha antiga. “Não pode pensar que são de agora”, defende. “E não dá para baixar a guarda só porque apareceram alguns artistas negros. Vivemos uma onda em oposição a essas conquistas. Temos de continuar para chegar a uma situação em que não precisemos falar de arte negra. É lutar para que não haja apenas uma, duas, dez ou 20 estrelas negras no mercado ou circuito de arte, mas uma constelação. Não devemos achar que já ganhamos, porque o conservadorismo está fortíssimo. A maior parte das pessoas que morrem de Covid-19 no país é negra, indígena, periférica. Acho que conseguiremos melhoras, mas com muita luta.”

Sua próxima incursão será a Made in China. Ele concluirá a “trilogia dos As”, afirma, referindo-se a América, África e Ásia. “Eu coloco a China como essa grandiosidade geográfica, fazendo apropriação da parte pelo todo, do todo pela parte, assim como quando falamos de África pensando em país.” A viagem partirá do Egito, percorrerá o Oriente Médio em direção a Mongólia, China, Rússia e Japão. “Dependendo de como estiver o Estreito de Bering, eu atravesso para o Alasca e desço até o Palmital. Esse é o desejo, dar a volta até chegar ao Palmital”, graceja (mas pode muito bem estar falando sério). “É pensar o quanto aChina se faz presente em Borun Nak (no Vale do Rio Doce), lugar onde nasci, com imigrantes chineses”, explica. “Como se faz presente em África, América e todo esse mundo, como é rechaçada, vista com maus olhos, sofre o racismo e não deixou de ser escravizada em colônias europeias, seja em África ou em América.”

“Haja caminhada...”, digo. “Vou viver até 90 anos, mas preciso completá-la antes, porque, quando comemorar 80, vou subir numa araucária para nunca mais descer”, sonha ele.