Danilo Venticinque

Os livros longos e a promessa do autor

Os livros longos e a promessa do autor

Quem, nos dias de hoje, tem tempo para ler um romance de 800 páginas?

DANILO VENTICINQUE
14/08/2014 - 12h29 - Atualizado 16/08/2014 22h33

Na era da informação fragmentada, escrever um romance é uma atitude no mínimo questionável. Escrever um romance de 800 páginas, ainda por cima, é um evidente sintoma de megalomania. Quem hoje em dia consegue separar tempo para ler um livro desse tamanho e perder preciosas horas dedicadas à efervescência das redes sociais?

Foi a indefensável pretensão literária da neozelandesa Eleanor Catton, a mulher de 28 anos mais antiquada do planeta, que deu origem a Os luminares, um dos livros mais elogiados dos últimos anos. Trata-se de uma obra obviamente fora de moda. Paródia dos romances vitorianos, o livro conta a história de um assassinato durante a corrida do ouro na Nova Zelândia do século XIX. Foi o livro mais longo (e a autora mais jovem) a ganhar o cobiçado Man Booker Prize. Críticos o descreveram como um trabalho vivo e extraordinário, cujas páginas parecem virar sozinhas. São comentários de gente que não tinha absolutamente nada para fazer e, mergulhada no mais profundo tédio, decidiu que ler um romance de 800 páginas seria uma boa maneira de passar o tempo.

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Antes que eu me junte a eles numa apaixonada defesa da leitura antiquada em tempos modernos, preciso fazer uma confissão: não li Os luminares. Como muitos outros jornalistas, diante de um prazo exíguo para escrever sobre uma obra nada enxuta, tive de recorrer a alguns truques da profissão para tornar viáveis as leituras inviáveis. Cada crítico tem suas artimanhas. Alguns leem diversas reportagens de outros jornalistas (que talvez também não tenham lido o livro) para assim descobrir tudo sobre a obra. Outros entrevistam o autor e confiam em sua capacidade de resumir centenas de páginas em poucos minutos de conversa. E há os que arriscam uma leitura apressada e incompleta, num misto de otimismo excessivo e desencargo de consciência. Ler cinquenta páginas de um livro de 800 é uma vergonha, mas é melhor do que não ler nenhuma.

Consegui terminar minha reportagem sobre Catton graças a uma mistura dessas três técnicas. Mas senti que não havia esgotado o tema. Decidi escrever mais um texto sobre Os luminares. Ainda sem ler o livro, evidentemente.

Resolvi aproveitar esta coluna para pensar um pouco nos motivos que levam um autor a escrever um livro tão longo quanto Os luminares — e, também, no que leva um leitor a enfrentá-lo.

A desculpa de Catton para escrever um romance vitoriano de 800 páginas é surpreendentemente contemporânea: distração diante do computador. Ela diz que escreveu o livro no Word, não se atentou à quantidade de páginas e só se deu conta da extensão do livro quando viu a primeira prova da versão impressa. Mesmo assim, continuou acreditando que seu livro cativaria os leitores apesar da extensão. O sucesso de crítica e público (mais de 500 mil cópias vendidas em todo o mundo) mostra que ela estava certa.

Catton descreve um livro longo como um contrato entre autor e leitor. "O autor promete ocupar mais tempo do leitor e entregar em troca uma experiência digna do tempo investido. Quanto maior o livro, maior a promessa. Levei isso muito a sério. Quis criar um livro de mistério que cumprisse essa promessa", disse ela em entrevista na Festa Literária Internacional de Paraty.

Não duvido que muitos acreditem na promessa do autor e de fato leiam o livro até o final. A julgar pelas críticas que o livro recebeu, o esforço vale a pena.  Mas para entender o sucesso do livro, sobretudo as expressivas vendas, é preciso lembrar também de outra promessa — feita não do autor para o leitor, mas sim do leitor para si mesmo.

Compramos um livro de 800 páginas na esperança de que seremos capazes de abrir mão de todos os nossos compromissos para lê-lo. Acreditamos nessa promessa. Poucas páginas depois, porém, as distrações do cotidiano reassumem o controle de nossas vidas e a leitura perde espaço. Passamos a encarar o livro longo não como um desafio a ser vencido, mas como uma lembrança do tempo em que acreditávamos que seríamos capazes de tal proeza de leitura. Um tributo ao que poderíamos ser.

Não há motivo para abandonar o otimismo, mesmo que nossos hábitos deponham contra nós. Conversei ontem mesmo com um amigo que também comprou Os luminares. Batizou-o carinhosamente de "chaproca". Ele confidenciou que não conseguiu avançar muito na leitura nos últimos dias, mas acredita que irá retomá-la. "Estou só esperando a internet de casa sair do ar", disse. É uma atitude admirável, que todo leitor deveria tomar como exemplo. Esqueçam o péssimo exemplo dos críticos que viram as páginas apressadamente e tentam ludibriar os autores de romances monumentais. Ler um livro de 800 páginas é uma tarefa para semanas, meses. Talvez até a vida inteira. E, se o autor cumprir sua promessa, cada hora da jornada terá válido a pena.

Agora, se me dão licença, tenho um livro para ler. Até a próxima semana.

***

Atualização:

Ok: quando quase nenhum dos leitores entende a piada, a culpa obviamente é de quem escreveu.

Achei que todos os leitores perceberiam que frases como “(…) escrever um romance é uma atitude no mínimo questionável” ou "São comentários de gente que não tinha absolutamente nada para fazer e, mergulhada no mais profundo tédio, decidiu que ler um romance de 800 páginas seria uma boa maneira de passar o tempo” são irônicas. Os leitores habituais da coluna entenderam. Eles sabem que eu gosto de livros. Se eu não gostasse, não dedicaria uma coluna semanal ao tema.

Como vocês podem imaginar, uma coluna sobre livros não é exatamente um estouro de audiência. Em contrapartida, felizmente, os leitores costumam ser bastante fiéis. Estou tão acostumado a escrever para o público de sempre que fiz uma piada interna e me esqueci do óbvio: nas redes sociais, os textos às vezes se espalham. Até mesmo os textos sobre livros, vejam só. E, para muita gente, o texto desta semana foi o primeiro contato com a coluna. Acharam, justificadamente, que eu sou um tremendo ignorante que odeia a leitura.

Não tenho lá grandes provas contra a minha ignorância, mas posso provar que gosto de livros. Quem navegar pelos links que acompanham a coluna desta semana verá que escrevo sobre livros há mais de um ano, num dos poucos espaços dedicados exclusivamente ao tema em sites de notícias.

Sobre não ter lido o livro da Catton até o fim antes de escrever a reportagem sobre ele: nem sempre os prazos para publicação de um texto permitem que você leia toda a obra. Isso vale especialmente para romances extensos como o dela. Não conheço nenhum ser humano que seria capaz de lê-lo em dois dias. Li o que consegui ler, entrevistei a autora e pesquisei sobre a vida dela para fazer o melhor trabalho possível. Depois, em vez de fingir que terminei o livro, resolvi ser sincero e brincar com o fato de que um romance de 800 páginas toma muito tempo. Diante da reação negativa de tantos leitores, não dá para não reconhecer que a brincadeira foi infeliz.

Peço desculpas aos leitores que ficaram ofendidos com o texto e torço para que eles deem outra chance à coluna.

Danilo Venticinque escreve agora às quintas-feiras.








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