Helio Gurovitz

O precursor da candidatura Trump

O precursor da candidatura Trump

O mérito de reconhecer o tamanho da audiência conservadora cabe ao criador e presidente da Fox, Roger Ailes

HELIO GUROVITZ
09/08/2015 - 10h00 - Atualizado 26/10/2016 15h43

O brasileiro está acostumado a associar o liberalismo a privatizações, austeridade fiscal, abertura e livre mercado. Nos Estados Unidos, “liberal” tem outro sentido. É alguém de esquerda, favorável a saúde e educação estatais, aborto, proteção de minorias como negros, mulheres, gays ou até leões africanos. São causas associadas ao Partido Democrata, cujas bases mais sólidas estão em Estados como Nova York ou Califórnia, centros da academia e da imprensa. O debate da Fox News na quinta-feira passada, o primeiro a reunir os pré-candidatos republicanos à sucessão de Barack Obama, foi em Ohio, um Estado-pêndulo, ora democrata, ora republicano. Os candidatos fizeram o maior esforço possível para afastar-se da pecha de “liberal”. Quem mais chamou a atenção, previsivelmente, foi o empresário-celebridade Donald Trump, com suas impagáveis frases de efeito.

A candidatura Trump foi recebida com um misto de perplexidade (“como levar a sério um fanfarrão que só quer aparecer?”), desprezo (“claro que ele não vencerá as primárias; outros já lideraram e naufragaram”) e temor (“mas e se ele levar?”). É provável que Trump não ganhe mesmo. Mas sua ascensão reflete um sentimento real de orfandade do eleitor. Em tempos de “ansiedade econômica e alienação política”, nas palavras do analista David Brooks, Trump fala um idioma compreendido pelos sete de cada dez americanos que não se veem representados em Washington. Sua linguagem é direta, agressiva. Seu populismo – embalado no narcisismo mitômano de um ego descontrolado – traz uma resposta fácil à população que desconfia das “elites liberais” dos grandes centros. É a mesma população que levou à liderança a rede de TV que transmitiu o debate. Se você assistir à Fox e ouvir comentaristas como Rush Limbaugh, Bill O’Reilly ou Sean Hannity, perceberá que Trump não inventou nada.
 

LIVRO DA SEMANA Roger Ailes off camera (Foto: Divulgação)

O mérito de reconhecer o tamanho da audiência conservadora cabe ao criador e presidente da Fox, Roger Ailes. Sem ele, a política americana hoje seria outra e Trump talvez nem fosse candidato. Ailes esteve envolvido na eleição de três dos últimos quatro presidentes republicanos: Richard Nixon, Ronald Reagan e George H. Bush. No final dos anos 1990, convenceu o empresário Rupert Murdoch a apostar em sua TV com um olhar à direita. A Fox capturou a agenda nacional, apostou em questões divisivas e contribuiu para a hoje irremediável separação entre eleitores “azuis” (democratas) e “vermelhos” (republicanos). Deu apoio às guerras do Iraque e do Afeganistão e à criação do Tea Party. Sua oposição a Obama gerou até um boicote da Casa Branca. A Fox é tão odiada que o comediante Jon Stewart, um ícone “liberal”, dedicou na semana passada um segmento inteiro de seu programa de despedida no canal Comedy Central a atacá-la. Não dá para entender os Estados Unidos de hoje sem a Fox ou sem Ailes. Dois anos atrás, ele próprio resolveu combater a campanha negativa e ofereceu acesso exclusivo ao jornalista Zev Chafets para uma biografia. O resultado, Roger Ailes off camera, lhe é obviamente simpático. Mas Chafets não foge das histórias incômodas. Procura, num eco ao slogan da Fox, ser “justo e equilibrado”.

As raízes de Ailes estão em Warren, uma pequena cidade operária de Ohio. Hemofílico, não teve uma infância fácil. Era frequentemente agredido pelo pai, que pelo menos uma vez o deixou sangrar a ponto de ir parar no hospital. Estudou televisão na mediana Universidade de Ohio. Até hoje tem preconceito contra universidades como Harvard ou MIT, que diz produzirem intelectuais sem conexão com o mundo real. Sua carreira mistura um talento excepcional a lances de sorte, transformados por Chafets numa narrativa eletrizante. Numa página, Ailes consola o filho Zac após uma derrota no futebol. Na outra, explica a Nixon, então no limbo republicano, por que a TV seria essencial caso ele quisesse candidatar-se à Presidência. Dá dicas a Reagan antes do debate em que estraçalhou o democrata Walter Mondale. Espontâneo, às vezes rude, fala o que lhe vem à cabeça em reuniões da Fox ou palestras a estudantes. Recebe o patrão, Murdoch, para acompanhar a apuração das eleições de 2012 e, diante da derrota, diz que é hora de os republicanos mudarem sua opinião sobre os latinos. Apesar da fama, Ailes cultiva relações sólidas com democratas e “liberais”, como Jesse Jackson ou a família Kennedy. Mantém a Fox na liderança de mercado desde 2002. Não faltam críticas a sua falta de sensibilidade para o público feminino, latino ou negro – apenas 1,3% da audiência, ante 20% da concorrência. Aos críticos, Ailes diz: “Os últimos dois caras que tiveram sucesso em alinhar o olhar de toda a mídia de um lado só foram Hitler e Stálin”. Poderia ser uma frase de Trump.








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