Helio Gurovitz

"Em busca do tempo perdido", o melhor livro que já li na vida

"Em busca do tempo perdido", o melhor livro que já li na vida

A humanidade já produziu toda sorte de obra genial. Nenhuma, para mim, se compara à "Recherche"

HELIO GUROVITZ
04/10/2015 - 10h02 - Atualizado 26/10/2016 15h36

Era o início de outubro de 1927 quando começou a circular por Paris o último capítulo do último volume de Em busca do tempo perdido, conhecido entre os aficionados apenas como La recherche. O autor, o francês Marcel Proust, estava morto havia quase cinco anos. Como os dois volumes anteriores, este não contara com sua criteriosa revisão. Fora cedido pelo irmão de Marcel, o médico Robert Proust, a seus editores de confiança na Nouvelle Revue Française. Publicado em capítulos, entre janeiro e setembro, encerrou a magnífica catedral literária erguida por Proust desde que, em 1908, mandara datilografar dez cadernos de anotações e começara a conceber a estrutura colossal de sua obra. Ele ainda não tinha ideia de onde aquela aventura o levaria, mas, desde o início, Proust sabia como queria terminar. O último volume, O tempo redescoberto, retoma e conclui o vertiginoso percurso em espiral do narrador ao longo de sete volumes – ou quase 4 mil páginas na melhor edição brasileira, da Globo Livros. Ao escrever o último parágrafo, em abril de 1922, Proust comentou com sua governanta Céleste que já poderia morrer. Morreu mesmo, meses depois, em dezembro daquele ano. Mas ninguém deveria morrer sem ler Proust.

É inócuo perder-se em debates acadêmicos sobre o melhor escritor de todos os tempos. A humanidade já produziu toda sorte de obra genial. Nenhuma, para mim, se compara à Recherche. Entre idas e vindas, parando e retomando meses, até anos depois, levei para ler aproximadamente o mesmo tempo que Proust levou para escrever, 14 anos. Outros 15 se passaram desde que terminei, e cada releitura acende novas luzes sobre os temas centrais do romance: o tempo e a memória. “As criaturas de Proust são vítimas desta circunstância e condição predominante: o tempo”, escreveu em seu magistral ensaio “Proust” o escritor irlandês Samuel Beckett. “Não há como fugir das horas e dos dias. Nem de amanhã nem de ontem.”
 

LIVRO DA SEMANA | "Em busca do tempo perdido" - Marcel Proust (Foto: Divulgação)

A lembrança, ou mais precisamente o despertar da memória, recorrente em vários momentos da Recherche, é o antídoto de Proust contra a passagem do tempo. “Marcel (o narrador) encontra as essências permanentes e escondidas das coisas só quando um momento presente se identifica com um momento passado: um odor já aspirado, um ruído já escutado são novamente aspirados e escutados”, escreveu o crítico italiano Pietro Citati. “Ao captar a identidade do presente com o passado, Marcel isola e imobiliza – a duração de um relâmpago – o que jamais se consegue parar: ‘um pouco de tempo em estado puro’.” Em todos os momentos capitais da Recherche – da célebre madeleine, doce que ele come no início do primeiro volume, aos degraus desiguais sobre os quais pisa na entrada da festa que encerra o último –, o despertar da memória nos captura para dentro da narrativa e como que faz o tempo parar. É uma sensação difícil de descrever. E, no entanto, todo leitor de Proust saberá exatamente do que se trata.

Vivemos tempos em que qualquer um tem um palco para expressar seus sentimentos em mensagens de 140 caracteres, numa fração de segundo. Por que dedicar horas, dias, anos da nossa vida a um livro com as lembranças de um homos­sexual francês de saúde fragílima – que se sentia culpado pela morte de sua mãe judia e passava o tempo entre os salões da nobreza decadente –, narradas em perío­dos intermináveis (transatlânticos, para usar o termo da época), a serpentear por páginas, o maior deles, escrito em caracteres normais, com 4 metros de comprimento? Virou um lugar-comum dizer que ler Proust não é para qualquer um. Prefiro entender o recado de outra forma. Proust é para todos, claro. O equívoco é colocá-lo num altar e endeusá-lo. Viajar para Illiers-Combray – a cidade de sua infância – atrás da casa da tia Léonie, para comer uma madeleine ou experimentar as receitas da Recherche, na tentativa de reviver as sensações de um gênio, é tão pretensioso quanto fazer um curso de vinhos, montar uma cozinha gourmet ou praticar golfe.

Ninguém está imune. Visitei Illiers com um casal de amigos anos atrás. É uma cidadezinha como qualquer outra. Os célebres caminhos de Swann e de Guermantes não passam de duas trilhas comuns, dessas que há aos montes pelo interior do Brasil. “Não é, portanto, Illiers-­Combray que deveríamos visitar. Para prestar a Proust uma homenagem autêntica, é preciso enxergar nosso mundo com os olhos dele, e não o mundo dele com os nossos olhos”, escreveu o filósofo Alain de Botton em seu livreto Como Proust pode mudar sua vida. A maior homenagem, diz Botton, seria no fundo entender que a obra de Proust, apesar de todas as qualidades, também deve parecer “estúpida, maníaca, hesitante, falsa e ridícula” para quem perde muito tempo com ela. Mesmo o melhor de todos os livros precisa ser deixado de lado e esquecido, para que possamos viver. (E depois, proustianamente, relembrar.) 








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