Helio Gurovitz

As vozes e o desencanto do "Homo sovieticus"

As vozes e o desencanto do "Homo sovieticus"

Em "O fim do homem soviético", Svetlana Aleksievitch dá voz à espécie que floresceu nas sete décadas de comunismo e começou a ser extinta com a ascensão de Gorbachev

HELIO GUROVITZ
01/11/2015 - 10h05 - Atualizado 26/10/2016 15h36

Depois de ser libertada pela polícia no início de 2011, nos arrabaldes de Minsk, a estudante bielorrussa Tatiana Koulechova, de 21 anos, não tinha dinheiro para voltar para casa. Ela participara dos protestos de 19 de dezembro contra o ditador Aleksandr Lukaschenko, fora presa, submetida a maus-tratos, depois solta em plena noite, ao lado de pedras. Enquanto cachorros latiam, ela teve a sorte de ver um táxi ao longe. Acenou. O motorista parou. Ela passou-lhe o endereço e explicou que não poderia pagar a corrida. “Ah, uma decembrista!”, disse o taxista. “Pode subir. Já levei para casa uma de vocês hoje.” Durante o trajeto, ele contou que, em 1991, era estudante em Moscou e participara das manifestações contra o golpe militar que tentara depôr Mikhail Gorbachev em 19 de agosto. O golpe foi frustrado, Gorbachev deixou o poder no final daquele ano, a bandeira vermelha foi trocada pela russa no topo do Kremlin, e o então presidente da Rússia, Bóris Iéltsin, passou a conduzir o desmantelamento da União Soviética, com uma onda de privatizações e reformas que implantaram o capitalismo na terra de Lênin, Trótski e Stálin. “Nós ganhamos”, disse o taxista a Tatiana. “Todos sonhávamos montar um pequeno negócio e ficar ricos. No que deu isso? Sob os comunistas, eu era engenheiro. Agora, dirijo um táxi. Expulsamos os calhordas, aí surgiram outros. Sejam negros, cinza ou laranja, são todos iguais! Aqui, o poder corrompe qualquer um.”

A cena é narrada pela jornalista e escritora Svetlana Aleksievitch, a vencedora do Prêmio Nobel de Literatura deste ano, quase no final dos 20 relatos que compõem seu último livro, O fim do homem soviético – Um tempo de desencanto, de 2013. O desabafo do taxista sintetiza a alma da obra de Svetlana. Não se trata de ficção, mas de um gênero que, na falta de termo melhor, só pode ser classificado como jornalismo literário. Svetlana dá voz a vários exemplares do Homo sovieticus, a espécie que floresceu nas sete décadas de comunismo e começou a ser extinta com a ascensão de Gorbachev. O livro é uma sucessão de depoimentos recolhidos ao longo de mais de duas décadas em países que formavam a antiga União Soviética. Anotados ou gravados, eles foram depois editados e são apresentados de forma contínua, como fala dos próprios personagens, quase sem intervenção. Svetlana os escolheu com a preocupação de apresentar não a grande História, com maiúscula, mas diversas histórias, em minúsculas, de vidas afetadas por transformações brutais. O resultado é aquilo que o Comitê do Nobel chamou de “polifonia” narrativa; um conjunto de vozes distintas de onde emana um som comum, subjacente a todas – o som da tragédia da alma russa.

LIVRO DA SEMANA O fim do homem soviético, de Svetlana Aleksievitch (Foto: divulgação)

Dez das histórias giram em torno da queda de Gorbachev; dez outras se passam na era Putin. A conversa começa nas conspirações dos tempos do socialismo, sempre na cozinha, cercada de medo de informantes, delações, prisões e degredos arbitrários. Passa pela motivação de suicidas – entre eles, o ex-chefe do Estado-Maior e conselheiro de Gorbachev, um jovem poeta e uma oficial morta na guerra da Tchetchênia em condições misteriosas, que as autoridades apresentam como suicídio. Atravessa o inconformismo dos antigos comunistas, que se recusam a aceitar os novos tempos, em que cientistas, professores e intelectuais se tornaram comerciantes e a exibição de riqueza substituiu a leitura secreta como sinal de distinção social. Percorre os caminhos da intolerância que emergiu com a extinção do poder central e fez eclodir o ódio entre armênios e azeris, russos e tadjiques, uzbeques, turcomenos ou judeus. Entra no apartamento, expropriado pela nova máfia russa, de uma senhora que não tinha dinheiro para enterrar a mãe. Ecoa tragédias como Romeu e Julieta ou Medeia. Há histórias de amor, de guerra, de conversão religiosa, de miséria e sofrimento. Mas também de enriquecimento, proporcionado a muitos, como a publicitária que tem uma filha, depois larga o amante milionário para levar uma vida de mulher independente numa sociedade machista.

Não há espaço para a pieguice nem para a vitimização. O fio condutor de Svetlana é apenas o povo soviético que voltou a ser russo (e tantas outras nacionalidades), com sua queda ancestral pelo autoritarismo, do tempo dos tzares às atrocidades de Stálin, desembocando em Putin ou Lukaschenko. As promessas do comunismo, do novo socialismo de Gorbachev, do capitalismo instantâneo de Iéltsin, do nacionalismo retrô de Putin contribuem apenas para alimentar a frustração e a melancolia. Fome, corrupção e violência nunca deixaram de existir. Mesmo as geladeiras e os supermercados, hoje cheios de mercadorias importadas e de uma cornucópia de alimentos antes inacessíveis, são incapazes de trazer consolo diante da realidade humana. Com ou sem comunismo, o álcool ainda reina soberano, e os salsichões típicos continuam a causar câncer.








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