Helio Gurovitz

O "Minha luta" que vale a pena ler

O "Minha luta" que vale a pena ler

As memórias do norueguês Karl Ove Knausgård são um mergulho narcisista. Inexplicavelmente, dá certo

HELIO GUROVITZ
14/02/2016 - 10h05 - Atualizado 26/10/2016 15h33

Mais que o vírus zika, o narcisismo é a maior praga contemporânea. Para onde quer que se olhe, lá está ele. Em Donald Trump ou Lula da Silva. No megalômano Eike Batista; no mitômano Marcelo Odebrecht. Nas rainhas que desfilam seus corpos na avenida; nas atrizes que exibem vozes e trejeitos nas novelas. Na competição dos atletas de elite; na disputa de mercado dos executivos milionários. Nos carros de luxo, nas roupas de grife, no aroma e nos taninos do vinho – sem esquecer, claro, o retrogosto –, assim como no fedor do charuto. O narcisismo está em tudo aquilo que só existe para alguém se julgar importante. E todos somos narcisistas em algum grau, nos achamos o máximo em algo, o centro do Universo, quando nada do que fazemos tem lá muita importância, pois tudo acabará do mesmo jeito – na morte, no nada. O narcisismo está também na arte, em especial na literatura. No vomitório confessional de escritores autopiedosos, que derramam suas angústias por páginas a fio. Nada mais narcisista que escrever meia dúzia de volumes em primeira pessoa, depois dar um título épico à obra, como Em busca do tempo perdido. Ou melhor, que tal Minha luta? Não o Minha luta de Adolf Hitler, que acaba de entrar em domínio público e se tornou foco de um debate insolúvel, que não admite saída honrosa (enquanto um lado defende a proibição do acesso a um documento histórico, o outro parece achar que notas de rodapé bastam para aliviar a consciência de veicular um texto execrável). Minha luta foi também, e não por coincidência, o título escolhido pelo norueguês Karl Ove Knausgård para a série de seis volumes que reúnem suas memórias.

Trata-se de um quase romance, em que a realidade é tratada como numa obra de ficção. Knausgård faz um relato preciso, em minúcias excruciantes, de sua própria vida. Foi comparado ao francês Marcel Proust, pela atenção aos detalhes, pela mistura de narração e reflexão, embora em várias passagens lembre mais as memórias do cineasta Marcel Pagnol. No primeiro volume, A morte do pai, acompanhamos a adolescência de Karl Ove nas pequenas cidades da Noruega. Sofremos suas dores, a descoberta da sexualidade, os namoros frustrantes, a patética tentativa de formar uma banda de rock, as dificuldades que transformam em aventura o simples transporte de sacos com cerveja para uma festa de Réveillon. Sentimos sua admiração pelo pintor inglês Constable, pelo som de Echo & The Bunnymen, New Order ou David Bowie. Estamos a seu lado quando ele tem de enfrentar o tema central da obra: a morte do pai, um ex-professor viciado em álcool que passara a viver com a mãe, a avó de Karl Ove, e transformara a casa dela numa pocilga – cheia de garrafas vazias, sujeira e excrementos. Antes do enterro do pai, Karl Ove, com a ajuda do irmão, Yngve, faz uma faxina metódica na casa, um lento trabalho de luto que perseguimos sem conseguir parar de ler, pontuado pela frase repetida pela avó a toda hora, entre um e outro episódio de incontinência urinária: “Ai, ai. A vida é uma luda, como dizia aquela velha que não conseguia pronunciar o tê”. Eis a luta de Karl Ove. Mas que temos a ver com ela? “Depois de centenas de páginas, comecei a resmungar: entendi que isso era Minha luta, mas tinha também de ser a ‘minha’ luta?”, perguntou o crítico James Wood.

LIVRO DA SEMANA - A morte do pai - Karl Ove Knausgård (Foto: divulgação)

Tamanha a preocupação com o próprio umbigo, tamanho o narcisismo, que o livro de Knausgård tinha tudo para dar errado. Inexplicavelmente, dá certo. Seu país se identificou tanto com a narrativa que um de cada nove noruegueses comprou a obra, traduzida em seguida para dezenas de idiomas. A avó e um tio decidiram processá-lo. Knausgård continuou a série até o sexto volume, ainda não lançado no Brasil. Nele, trata de Hitler e dos limites da linguagem para lidar com a morte. Por várias páginas, discute o poema “Stretto” (em alemão, “Engführung”), do romeno Paul Celan, sobrevivente do nazismo que se matou em Paris em 1970. “Sua linguagem foi destruída pelo que acontecera na Alemanha, pelo Holocausto”, disse Knausgård em entrevista a Wood. “É a linguagem de Hitler. Você não pode usá-la, não pode usar as palavras ‘terra’ ou ‘sangue’. O poema é uma meditação sobre o Holocausto e sobre a morte. A questão é, se você menciona a palavra ‘morte’, ela existe, mas a morte não existe – é nada.” Ao final do primeiro volume, diante do cadáver do pai, ele escreve: “Os seres humanos são apenas formas em meio a outras formas, as quais o mundo não cessa de reproduzir, não só naquilo que tem vida, mas também naquilo que não tem, desenhado na areia, na pedra e na água. E a morte, que eu sempre considerara a maior dimensão da vida, escura, imperiosa, não era mais que um cano que vaza, um galho que se quebra ao vento, um casaco que escorrega do cabide e cai no chão”. Karl Ove, como Celan, luta contra o narcisismo, por palavras para dizer o inefável.








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