Helio Gurovitz

Um relato com o sangue-frio dos homicidas

Um relato com o sangue-frio dos homicidas

É possível sair da leitura de Truman Capote com opinião contra ou a favor. Mas nunca indiferente

HELIO GUROVITZ
10/04/2016 - 10h00 - Atualizado 26/10/2016 15h27

Duas das maiores obras daquilo que se convencionou chamar de “jornalismo literário” se tornaram cinquentões. A primeira é o perfil “Frank Sinatra está resfriado”, publicado por Gay Talese na revista Esquire, em abril de 1966. É uma espécie de Mona Lisa dos perfis – peça que estabelece, pelo nível de excelência, um patamar sempre almejado, nunca atingido. A segunda obra é uma série de quatro reportagens de Truman Capote, publicadas na revista New Yorker no final de 1965, depois reunidas em livro no início de 1966. Ela narra a chacina brutal de uma família rural do Kansas, nos Estados Unidos. Se Talese pintou uma Mona Lisa, não é exagero dizer que Capote compôs uma Nona Sinfonia. Em seus quatro capítulos – ou movimentos –, A sangue frio não apenas definiu um novo gênero, o romance de não ficção. Também abriu um debate sobre os limites éticos do jornalismo e expôs, sem ranço ideológico, a realidade que cerca a pena de morte.

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Em novembro de 1959, quando viu uma pequena notícia sobre o assassinato misterioso da família Clutter, no remoto vilarejo de Holcomb, Capote já era um autor consagrado pelo best-­seller Bonequinha de luxo. Interessou-se por investigar como um crime tão bárbaro – o casal, o filho e uma filha haviam sido amarrados, amordaçados e fuzilados na madrugada de sábado, sem motivo aparente – afetaria a população da bucólica Garden City, município a que Holcomb pertencia. Jamais acreditava que os culpados poderiam ser descobertos. Foi para o Kansas com sua amiga de infância, a também escritora Harper Lee. Depois de vencer a resistência inicial, os dois se aproximaram dos habitantes e dos investigadores. Recolheram obsessivamente todos os detalhes sobre a família e o crime. No final de dezembro, foram capturados dois suspeitos – Perry Smith e Richard Hicock –, graças à denúncia de um antigo companheiro de cela de Hicock. Pegadas, armas e outros vestígios bastavam para comprovar que eram culpados. Ambos confessaram.

Julgados em abril, os dois foram condenados à forca, apesar de uma divergência nas confissões – Hicock sustentava que apenas Smith dera os tiros. Durante o período em que esperaram no corredor da morte, Capote se aproximou deles e recolheu elementos para traçar um minucioso perfil psicológico de ambos. Embora jamais tivesse admitido perante as autoridades, Smith reconheceu a Capote ter sido o autor de todos os disparos. Apenas depois da execução dos dois, em 1965, tal fato foi incluído no texto, uma narrativa primorosa, cheia de pormenores e recursos de suspense, em que Capote trabalhara durante anos. Detalhes factuais foram contestados, ele foi acusado de inventar frases atribuídas aos personagens, pois não usava bloco de notas nem gravador. Mas a essência do relato, escrito com o mesmo sangue-frio dos homicidas, é até hoje considerada correta.

Livro da semana: A sangue frio, de Truman Capote (Foto: divulgação)

É possível sair da leitura contra ou a favor da condenação dos acusados à forca. Mas nunca indiferente. Capote foi criticado por não expor a confissão de Smith antes da execução de Hicock. Foi execrado por não tomar atitudes legais, diante das evidências de que Smith – com quem se identificava – sofria de problemas mentais. Na análise das deficiências da Justiça para lidar com elas, muitos lerão um libelo contra a pena de morte. Outros verão, na crueza do relato, um caso exemplar para sua aplicação. “Devido à violência do crime e à aparente falta de compaixão para com as vitímas, a única maneira de assegurar que o povo estará absolutamente protegido é condenar os acusados à pena de morte”, afirma o procurador Duane West a certa altura. “Especialmente porque no Kansas não existe a prisão perpétua sem a possibilidade de condicional.” Não havia dúvida, mesmo com todos os questionamentos a respeito da autoria dos disparos ou da sanidade mental dos criminosos, de que ambos sabiam distinguir o certo do errado, nem sobre a premeditação do crime. Eram essas as condições legais para a condenação à morte no Kansas.

Pouco antes de ser presos, Hicock e Smith tentavam fugir. Quase conseguiram emprego num navio-tanque destinado ao Brasil. Teriam vindo para cá, mas nenhum dos dois tinha inscrição no sindicato nem passaporte. Hicock ficara animado: “O Brasil! É lá que estão construindo uma capital. A partir do zero. Imagine só, chegar a um lugar numa altura destas! Qualquer imbecil pode fazer fortuna”. Provavelmente não sabia que, aqui, a pena de morte não é aplicada desde o século XIX. Hoje só é prevista para crimes de guerra – jamais para uma chacina brutal, cometida em troca de US$ 40, um binóculo e um aparelho de rádio. Mas nunca cessou o debate sobre a volta das execuções ou a adoção de punições mais duras para crimes hediondos. A sangue frio demonstra por que esse é um debate com posições tão irredutíveis quanto a própria morte.








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