Helio Gurovitz

O islã é diferente das outras religiões?

O islã é diferente das outras religiões?

É um erro fazer como Trump e estigmatizar mais de 1,6 bilhão de muçulmanos. Ao mesmo tempo, é impossível negar o papel da religião na política do Oriente Médio

HELIO GUROVITZ
19/06/2016 - 10h00 - Atualizado 26/10/2016 15h26

Em reação ao atentado que matou 49 pessoas e feriu outras 53 na boate gay Pulse, em Orlando, na Flórida, o virtual candidato republicano à Presidência americana, Donald Trump, tuitou a seguinte frase: “Agradeço os parabéns por estar certo sobre o terrorismo islâmico radical”. Dê, por ora, um desconto ao narcisismo que rodeia cada palavra, cada gesto, cada fio da cabeleira de Trump – e o conduz, meio por inércia, à autocongratulação diante de tamanho massacre. O que ele diz encontra eco em parcela expressiva da população, não apenas nos Estados Unidos. “Estar certo sobre o terrorismo islâmico radical” significa, para Trump, “estar certo” também sobre a necessidade de proibir muçulmanos de entrar no país. Significa que o islã tem algo de diferente, por isso deve ser segregado. Significa que o presidente Barack Obama “estava errado” ao não falar em “islamismo radical” quando condenou o atentado. Significa, enfim, uma oportunidade para Trump promover sua agenda preconceituosa, demagógica e populista. “Vamos começar a tratar os americanos muçulmanos de modo diferente? A sujeitá-los a vigilância especial? A discriminá-los por causa de sua fé?”, perguntou Obama num ataque a Trump. Nada disso está certo, claro. A resposta de Trump é a pior possível. Mas sua xenofobia toca num nervo, de onde deriva sua popularidade: a singularidade do islã em sua relação com o Estado e a política. Ela é fundamental para entender não apenas a popularidade de Trump, mas os dilemas do próprio mundo islâmico.

“O islã é, sim, diferente no modo como se relaciona com a política”, escreve o pesquisador Shadi Hamid, da Brookings Institution, no recém-lançado livro Islamic exceptionalism: how the struggle over Islam is reshaping the world (algo como Excepcionalidade islâmica: como a luta pelo islã está remodelando o mundo). “A ‘excepcionalidade islâmica’, porém, não é em si boa ou ruim. Apenas é, e precisamos entendê-la e respeitá-la, mesmo se contraria nossas esperanças e preferências.” É um erro fazer como Trump e estigmatizar mais de 1,6 bilhão de muçulmanos. Ao mesmo tempo, diz Hamid, é impossível negar o papel da religião na política do Oriente Médio. Muçulmano, filho de imigrantes egípcios, Hamid nasceu e foi criado na Pensilvânia. É um especialista respeitadíssimo em Oriente Médio que se define como “liberal no sentido clássico”. Acompanhou de perto a Primavera Árabe e os movimentos – fracassados, na maioria – que lutaram pela democracia na região. Constatou, nas sociedades islâmicas, o papel preponderante da religião e como ela determina o ambiente político, ao opor grupos “islamistas” e “seculares”.

LIVRO DA SEMANA - Islamic exceptionalism - Shadi Hamid (Foto: divulgação)

Hamid analisa quatro exemplos em detalhes. Primeiro, o fracasso da democracia no Egito, com o golpe militar que tirou do poder o governo da Irmandade Muçulmana e massacrou 800 manifestantes em 2013. Segundo, o governo turco do Partido da Justiça e Desenvolvimento (AKP), islamista, com o progressivo desafio à tradição laica no país. Terceiro, o também islamista Ennahda, na Tunísia, afastado voluntariamente do poder e de seu programa religioso, para preservar o regime democrático. Quarto, o surgimento do Estado Islâmico, com a adoção de leis religiosas do século VII e brutalidade jamais vista nos territórios conflagrados da Síria e do Iraque. Em todos esses casos, Hamid vê respostas para o mesmo dilema: como conciliar a lei islâmica e o conceito moderno de Estado-nação. “O Estado Islâmico tenta responder a uma questão, assim como a Irmandade Muçulmana, o Ennahda na Tunísia e o AKP na Turquia oferecem suas próprias respostas”, diz. “Cada um desses grupos apresenta um argumento sobre o papel da religião na vida pública.”

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A tese mais provocativa de Hamid é a recusa em aceitar que o mundo muçulmano seguirá o mesmo caminho que levou, no Ocidente, da Reforma Protestante ao Iluminismo e à separação de Igreja e Estado nas democracias liberais. “Não é que tal desfecho seja impossível, mas é extremamente improvável no curto e no médio prazos”, afirma. “Forçar as pessoas a se tornar liberais ou seculares, especialmente quando não querem, não costuma funcionar bem.” A democracia, diz ele, é perfeitamente compatível com o islã. Mas não necessariamente o liberalismo, doutrina baseada em direitos e liberdades individuais. Muitas vezes, os dois entram em conflito. Ora uma eleição democrática leva ao poder um governo antiliberal, de inspiração religiosa; ora um golpe antidemocrático estabelece um governo secular, que oferece algumas garantias individuais. Persiste a tensão essencial entre Estado e religião. A conclusão de Hamid é pessimista: “Se o islã é mesmo distinto na forma como se relaciona com a política, as divisões fundamentais que dilaceram o Oriente Médio persistirão, ainda por um longo tempo”. É daí que oportunistas como Trump alimentam seu ódio.

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