Helio Gurovitz

É Homero? Um menestrel? Um trovador? É Bob Dylan!

É Homero? Um menestrel? Um trovador? É Bob Dylan!

Poesia, como Dylan comprova, não é apenas para ler. É para declamar em voz alta, para entoar, para cantar

HELIO GUROVITZ
16/10/2016 - 10h00 - Atualizado 26/10/2016 15h15

Difícil entender o que Bob Dylan canta. Sua voz fanhosa, a pronúncia e o dialeto do Meio-Oeste, as contrações engolindo vogais e consoantes quase despem as palavras de sentido. Restam apenas o ritmo sincopado, a batida folk da guitarra em meio ao estrilo da gaita, o grito de protesto diante de um mundo hostil. Resta, em suma, a essência poética. Ouvir Bob Dylan cantar e, ao mesmo tempo, ler seus versos é entender a tradição que começa com Homero, passa pelos trovadores provençais e pelo cancioneiro de dezenas de povos e nações, para desembocar no Minnesota – de onde o menino judeu Robert Allen Zimmerman partiu para Nova York aos 19 anos, em 1961, atrás de seu ídolo Woody Guthrie, conquistou o rock’n’roll com o nome artístico inspirado no poeta galês Dylan Thomas, tornou-se a maior voz da geração dos anos 1960 e alcançou, na quinta-feira passada, uma glória inesperada: o Prêmio Nobel de Literatura.

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Poesia, como Dylan comprova, não é apenas para ler. É para declamar em voz alta, para entoar, para cantar – seja ao som da lira grega, do alaúde medieval ou da guitarra elétrica com que ele chocou os puristas. “Meia dúzia de horas ouvindo versos ser cantados daria a estudantes (de literatura) mais conhecimento que um ano de trabalho em filologia”, escreveu o poeta Ezra Pound em 1913. “Tanto na Grécia quanto na Provença, a poesia atingiu seu mais alto brilho métrico e rítmico nos momentos em que as artes do verso e da música estavam mais imbricadas, quando cada coisa feita pelo poeta tinha alguma motivação ou necessidade musical atrelada.”

É por isso que os primeiros a defender, 20 anos atrás, a indicação de Dylan para o Nobel faziam questão de enfatizar sua filiação não apenas ao movimento beatnik dos anos 1950 – entre esses defensores estava o próprio Allen Ginsberg, maior estrela beat –, mas à mais antiga linhagem da poesia universal. “Poesia e música dividiram um terreno comum, dos gregos a Pound, a Ginsberg. Categorize-se o trabalho de Dylan como quiser, suas qualidades literárias são excepcionais”, escrevia em 2007 Gordon Ball, um insistente defensor do Nobel para Dylan, hoje no departamento de literatura da Universidade Washington & Lee. O próprio Dylan se considera mais poeta do que músico. “As palavras são tão importantes quanto a música. Não haveria música sem as palavras”, já dizia em 1965. “Considero-me primeiro um poeta, depois um músico”, continuava a afirmar em 1978.
 

Livro da semana | The lyrics: 1961-2012 (Foto: Divulgação)

O poder dos versos de Dylan, claro, não se esgota na prosódia. Ele uniu som e sentido, forma e conteúdo, para alcançar uma audiência planetária. “É como Shakespeare ou Dickens – grandes escritores que comunicaram a várias classes”, diz o crítico literário britânico Christopher Ricks, outro pioneiro no estudo de Dylan. “Não acredito que haja hoje um poeta americano ou britânico mais sensível e imaginativo do que Dylan no uso da linguagem. Se a questão é ‘alguém usa palavras melhor que ele?’, a resposta, na minha opinião, é ‘não’.”

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Cantadas no início por quem protestava contra a Guerra do Vietnã, tais palavras fazem efeito até hoje. Basta lembrar, em tempos de Donald Trump, o brado de “Talkin’ John Birch paranoid blues” (Não importa muito que ele era fascista/Pelo menos você não pode dizer que era um comunista) ou, nesta era de Operação Lava Jato, a toada de “Hurricane” (Agora todos os criminosos em seus fraques e gravatas/Estão livres para tomar martínis e assistir ao sol nascer). Mas seria simplista resumir a poesia de Dylan ao protesto político ou à crítica social. Seus versos mais belos, a exemplo de Ginsberg ou dos beatniks, ecoam a alma modernista sem rumo de Pound, T.S. Eliot ou W.H. Auden, são um canto de desespero ante as respostas sem sentido da política, da ciência ou da religião. Traduzem o vazio, a solidão essencial do ser humano. Eis Dylan em “It’s alright, Ma”:

Não tenha medo se ouvir
Um som estranho ao seu ouvido
Está tudo bem, mãe, estou só suspirando (…)
Palavras desiludidas latem como balas
Enquanto deuses humanos miram em seus alvos
Fabricam de tudo, de armas de brinquedo que faíscam
A Cristos em carne colorida que brilham no escuro
É fácil ver sem olhar muito longe
Que quase nada é sagrado mesmo

Se a humanidade ainda tem alguma chance neste ou noutros planetas, a música e a poesia de Dylan restarão como retrato deste nosso tempo. Soprando no vento, a lembrar que, jovem para sempre ou batendo à porta do céu, quando você não tem nada, nada tem a perder. É invisível, não tem segredos a esconder. Está sozinho, sem caminho de casa, um total desconhecido, como um seixo que rola.








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